sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo XVI

"Os alunos estão animados com a perspectiva de um dia diferente e ouvem-se grandes gargalhadas no meio de uma algazarra generalizada. Lembro-me que quando andava no secundário também adorava visitas de estudo e, inevitavelmente, eu e as minhas amigas acabava mos sempre por arranjar grandes paixões nessas ocasiões. Depois de circular pelo autocarro fazendo alguns avisos aos alunos do tipo «nada de bebidas» e «não se fuma no autocarro», sento-me junto da Henriqueta e da Luisinha, alunas de Artes da minha orientadora de estágio, e a nós junta-se também o Bruno, o aluno das piscadelas de olhos maliciosas. Falamos de piercings, de tatuagens e de música e num momento de silêncio eu reflicto na razão que me leva a adorar a companhia dos adolescentes em detrimento da companhia dos meus colegas de profissão, mas a resposta para isso já eu sei há algum tempo: interesses comuns. A ideia que eu tenho é que a maior parte dos meus colegas de profissão estão demasiado preocupados em manter uma postura que camufle o seu verdadeiro eu ou então, e essa será a pior alternativa, esqueceram por completo o seu lado mais genuíno e a altura em que também eles eram jovens adolescentes. Mesmo que eu não sentisse uma grande afinidade com os meus alunos, tenho a certeza que, dentro dos possíveis, iria sempre tentar colocar-me no lugar deles e penso que se todos o fizessem, muitas situações desagradáveis e desentendimentos poderiam ser evitados. Por vezes, a falta de aproveitamento dos alunos não está relacionada com as poucas capacidades, mas sim com a desmotivação, interesses paralelos, ambiente familiar degradado ou outro qualquer factor circunstancial e tudo isso tem que ser tido em conta quando se pretende avaliar o perfil de um aluno. No entanto, esta tarefa não é fácil porque com uma média de trinta alunos por turma torna-se muito complicado para o professor fazer um acompanhamento mais individualizado dos alunos. Volto à realidade porque o Bruno, descarado como sempre, me entreabre ligeiramente o casaco de gsnga. Pergunto-lhe logo o que é que ele pensa que está a fazer e ele diz-me para eu «não stressar» porque ele só quer ver a minha sweat-shirt. Continua a falar e diz que não me vai mais chamar «s'tora» porque afinal eu não sou professora dele. Eu fico mais ou menos alarmada e digo-lhe que não é bem assim porque, na verdade, quando há regências eu vou dar aulas à turma deles. Ele deita-me um olhar desdenhoso e atira-me - Pensei que eras diferente! Não me digas que ligas a essa merda de títulos?!A Henriqueta e a Luisinha repreendem-no, quase em uníssono - Oh Bruno, francamente!Eu decido que não vou passar por enjoada - OK, eu não me importo que vocês me tratem por Mel.O Bruno passa a mão pelos seus compridos e encaracolados cabelos negros, como se os estivesse a acariciar, e sinto que o olhar dele me percorre todo o corpo. Acabamos por cruzar os olhares e há algo no seu rosto que eu não consigo muito bem definir: desafio, talvez? Ao fim de uns breves segundos a sua expressão altera-se e lança-me um sorriso que deixa a descoberto uma fileira de alvos dentes.O resto da viagem decorre sem incidentes e chegados a Lisboa visitamos o que estava programado e ao final do dia, antes de partirmos de regresso a Coimbra, instalamo-nos numa esplanada. A maior parte dos alunos está por ali e a Henriqueta lança um olhar de desprezo ao grupo do Joka, que está acompanhado pela namorada, e comenta com a Luisinha que os «betinhos» chegaram. Eu pergunto-lhe o porquê daquela implicância.- Mel, já viste aquilo? Nitidamente, filhinhos do papá.Aquilo soa-me um bocado a dor de cotovelo e resolvo aprofundar a questão para tentar desfazer aquela impressão - Ah, e vocês também não são filhinhos do papá?- Eles pertencem a outra tribo - observa a Luisinha.- Que tribo? À grande tribo humana, queres tu dizer - contraponho eu - Já falaste com algum deles?Ela abana a cabeça e eu continuo - Estás a ver? Olha, o Joka é muito fixe!- Quem? O Joka, Joka? - pergunta a Henriqueta.Dá-me vontade de rir porque em dois dias é a segunda vez que alguém se refere a ele assim - Sim. Eu acho-o muito simpático.Elas olham as duas em direcção ao sítio onde ele está sentado e riem-se - Nós também o achamos muito simpático, Mel - acrescenta a Luisinha.- Vocês são terríveis!- Dizem que o Joka é fixe, mas aquela namorada dele deve ser uma frívola - diz a Henriqueta.Eu não acredito que ele possa namorar com alguém assim e penso que é a sina das mulheres bonitas serem apelidadas de burras ou supérflua. Elas continuam a trocar impressões entre si sobre o grupo dos «betinhos» até que a Luisinha me pergunta - Se tivesses que escolher, qual preferias? O Bruno ou o Joka?Quase que me engasgo com um gole de Coca Cola que tinha acabado de beber. Tusso e finalmente pergunto - Escolher como?- Assim, a nível físico.Calo-me sem saber o que responder e se devo responder. A imagem do Bruno surge-me imediatamente, como por magia, e eu penso que gosto bastante do aspecto irreverente dele. olho para o Joka que se encontra quase de frente para mim e registo na retina os seus gestos: a forma como ele pega na garrafa de água e a leva aos lábios, a maneira como se recosta na cadeira, ouvindo atentamente a conversa, e o jeito aparentemente descuidado com que as madeixas louríssimas do seu cabelo lhe caem sobre os olhos. Não me apetece desviar o olhar dele e imagino que se pudesse, ficava a tarde toda sentada naquela esplanada a contemplá-lo. - Então Mel? Quem escolhias? - volta a perguntar a Luisinha.Mil pensamentos atravessam-me o espírito e eu penso que devo estar completamente maluca, mas sem hesitar respondo - O Joka, sem sombra de dúvida."