sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo VIII

"Ao fim de uma ou duas semanas de aulas percebi que a escola é um mundinho à parte que não tem absolutamente nada a ver com a minha realidade. Alguns dos meus colegas de profissão são pouco amistosos e alguns chegam a ser mal-educados, pelo menos, de acordo com as minhas regras básicas de boa convivência. Não me parece uma atitude propriamente cortês não corresponder a um bom-dia. Para além disso, foi com decepção que reparei que as conversas na sala de professores se resumem ou à vida escolar ou então aos maridos e filhos. Os outros grupos de estágio comportam-se como um rebanho obediente e também com eles não é fácil chegar à fala. Restam-me as minhas próprias colegas de estágio, mas curiosamente o meu horário não é coincidente com o delas e raramente nos cruzamos, a não ser quando temos efectivamente de reunir. Foi por ter feito esta constatação que resolvi começar a trazer o meu leitor de mp3 para matar os tempos livres que medeiam entre as aulas que tenho que dar, porque a realidade é que apesar de só ter duas turmas, há dias em que tenho que esperar pelo período da tarde para dar a aula seguinte. A primeira vez que me sentei no sofá e coloquei os headphones nos ouvidos, detectei meia-dúzia de olhares a fitarem-me com uma expressão surpreendida. Apeteceu-me imediatamente dizer-lhes que era mil vezes melhor ouvir Nirvana do que ser bombardeada com conversas de tupperware. Fecho os olhos, concentrando-me na música e tentando abstrair-me de tudo o que me rodeia, deixando o meu pensamento vaguear. Passados uns momentos abro os olhos e deito uma olhadela em redor, como para verificar se alguém me está a ler a mente. Noto que um colega me observa mal disfarçadamente e percebo que já não é a primeira vez que isso acontece. Não faço a mínima ideia de qual seja o nome dele, nem qual a disciplina que lecciona, mas também não estou muito interessada nesses pormenores. Torno a cerrar os olhos e delicio-me com a música. Como oportunamente referiu a minha amiga Maria «a vida sem música é como umas cuecas sem elástico». Na sua simplicidade, que é um apanágio próprio dela, a Maria acaba sempre por dizer grandes verdades. Imersa na música, o tempo acaba por passar rapidamente e preparo-me para a última aula do dia. Ao fim de meia-dúzia de aulas com as minhas turmas, o nervosismo inicial desapareceu completamente dando lugar a uma absoluta tranquilidade e é com naturalidade que atravesso o recreio, abrindo caminho entre bandos de miúdos barulhentos do 7º ou 8º ano. A minha turma do 11º ano espera-me junto à porta da sala e mentalmente esboço um sorriso. Como na última aula marquei três ou quatro faltas por atraso, hoje tenho uma comitiva de recepção. De facto, nada como passar à acção, ao invés de ameaçar eternamente e nada fazer. Alguns cumprimentam-me com um «olá s'tora» e o Lindo prontamente vem oferecer-me a sua ajuda para abrir a porta da sala. Respondo-lhe amavelmente que não precisa de se incomodar porque eu sou perfeitamente capaz de abrir uma simples porta. Deixo os alunos entrar antes de mim e depois de todos estarem dentro da sala fecho a porta. Foi uma estratégia que comecei a pôr em acção logo depois da terceira ou quarta aula, quando percebi que muitos deles ficavam na conversa à porta da sala e iam entrando aos poucos o que tinha como consequência eu não conseguir começar a aula enquanto todos não estivessem dentro da sala. Ainda não consegui acabar com a barafunda inicial, mas já aprendi a aproveitar para escrever o sumário enquanto eles tiram e não tiram os cadernos e depois é só ditá-lo quando eles já tiverem sossegado. É o que me preparo para fazer quando ouço um «posso professora?». Levanto os olhos em direcção à porta e deparo com um aluno, numa atitude expectante, com os livros debaixo do braço e um leve sorriso desenhado no rosto bronzeado. Os outros alunos começam imediatamente numa gritaria do tipo «Ei Joka! Tudo bem?». Imponho o silêncio e o Fernando sempre solícito informa - É o Joka, s'tora. O nosso colega que estava no Havai - De repente, lembro-me de efectivamente estar um dia destes a marcar falta ao aluno e os outros me terem dito que ele estava a participar num campeonato de surf no Havai. Na altura, achei que devia ser treta , mas agora, olhando para o aluno em questão começo a achar que devia ser mesmo verdade. Reparo que ele continua no umbral da porta à espera e rapidamente convido-o a entrar e a sentar-se num dos lugares que estão livres. Ele senta-se ao pé de uma miúda morena, de cabelo curtinho todo espetado, que faz um ar derretido e recebe olhares de inveja dos outros elementos femininos da turma.
- Como é mesmo o teu nome? - pergunto.
-Miguel, professora, mas todos me chamam Joka. Se a professora não vir inconveniente também gostaria que me tratasse assim.
Antes de eu poder dizer alguma coisa, o Fernando adianta-se - A s'tora não vê nenhum inconveniente, Joka, porque ela chama-se... - hesita, deita um olhar em redor e continua - Ainda não sabemos, mas todos lhe chamam Mel.
Atiro-lhe um olhar quase mortal e ele imediatamente diz - Desculpe, s'tora.
O aluno em questão sorri, de uma forma que eu interpreto como sendo delicada e eu resolvo dar início à aula - Muito bem Joka. Actualiza-te relativamente à matéria e qualquer dúvida que tenhas estou à disposição."