sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo XI

"Sempre que penso na relatividade do tempo, acode-me à lembrança "A Persistência da Memória" de Dali. Quando tomo consciência, percebo que estou no final do 1º período, mas se olhar para trás, ainda ontem era o primeiro dia de Setembro. Tive a minha primeira aula assistida pelo formador da Universidade, que não correu bem nem mal; convidei, pela primeira vez, um aluno a sair da sala de aula (o Bruno, um aluno gordinho do 10º ano que gosta de medir forças comigo) e estou, pela primeira vez na minha vida, a decidir uma pequena parte do futuro dos meus alunos, no complicado processo que é atribuir classificações de zero a vinte. É o que eu faço neste preciso momento, sentada numa mesa redonda do polivalente, com o dossier do professor aberto à minha frente e um café ao lado. Não é usual um professor sentar-se ali, por isso, os poucos alunos que por ali circulam, olham-me com algum espanto, mas eu prefiro enfrentar os seus olhares de surpresa do que ouvir as intermináveis histórias das minhas colegas ou, então, ser pela vigésima vez, convidada a contribuir para mais uma campanha "não sei das quantas", por uma implicativa colega de Educação Física que acha que as pessoas não têm mais nada para fazer ao dinheiro. Comparo mais uma vez as classificações de dois alunos, acerca dos quais tenho dúvidas, e mantenho uma certa preocupação, temendo não estar a ser completamente justa. Mordisco a ponta do lápis, num claro sinal de indecisão, e espero que desça sobre mim alguma luz que me ilumine, mas o que subitamente sinto é precisamente uma sombra. Ergo os olhos e deparo com o Lindo, parado à minha frente. Instintivamente fecho o dossier e espero que ele se decida a dizer alguma coisa. Noto algum nervosismo estampado no seu rosto e interrogo-me sobre o motivo dele estar ali especado a olhar para mim.
- Posso falar consigo, s'tora? - resolve-se ele finalmente.
Resolvo jogar pelo seguro - Se é por causa da tua nota, é melhor esperares pela aula para conversarmos acerca desse assunto.
- Não é por causa da nota. É uma outra coisa.
Olho surpreendida para ele e penso que outro assunto é que ele pode ter para tratar comigo e que o deixa à beira de um ataque de nervos. Ele puxa uma cadeira e senta-se mesmo à minha frente, apoiando o queixo entre as mãos. De repente, uma terrível suspeita começa a apoderar-se de mim e começo a sentir-me horrivelmente desconfortável.
- O que tenho para lhe dizer é particular.
As minhas suspeitas adensam-se e recosto-me na cadeira numa tentativa de aumentar a distância entre nós.
- Certamente já reparou que eu gosto muito de si...
Resolvo interrompê-lo - Ainda bem. Gosto que os meus alunos gostem de mim.
- S'tora, eu gosto de si de uma outra maneira.
Tremo só de pensar no que se seguirá, mas não me ocorre nada de inteligente para dizer.
- S'tora, estou apaixonado por si.
Levo um susto e apesar de já estar praticamente a adivinhar o que ele ia dizer, espanta-me a audácia dele. Percebo que a bola está agora do meu lado porque depois de fazer aquela revelação, o Lindo fechou-se num silêncio pesado. Decido abordar o asunto diplomaticamente - Lindo, provavelmente estás a fazer uma grande confusão. É natural os alunos sentirem alguma admiração pelos seus professores...
Ele abana energicamente a cabeça - S'tora, isso aplica-se a miúdos do 7º ano. Eu tenho 19 anos e sei muito bem o que é estar apaixonado.
O argumento dele desarma-me mas não me posso dar por vencida - Ainda assim. Eu penso que estás a projectar em mim... - mais uma vez não consigo acabar a minha frase.
- Eu ando sempre à sua procura para ver se a vejo. Aos fins-de-semana sinto a sua falta e não paro de pensar em si, portanto, gostava que me levasse a sério.
Vejo que não tenho escapatória possível e que vou ter de falar a mesma linguagem que ele - Olha Lindo, em primeiro lugar, acho que a escola não é o local mais adequado para ter esta conversa, mas já que tomaste a iniciativa eu vou dizer-te o que penso.
Ele suspira fundo, certamente ansioso por saber o que eu vou dizer a seguir e eu prossigo implacável - Respeito o teu sentimento mas deves saber que ele não é correspondido. Gosto de ti como gosto de todos os meus alunos, mas nada mais do que isso.
Ele morde os lábios e eu sinto uma certa pena dele mas não sei que mais lhe posso dizer. Ele acaba por me poupar esse trabalho - Se eu não fosse seu aluno era possível gostar de mim?
É a minha vez de suspirar - É uma questão que não se pode colocar nesses termos.
Ele esboça um gesto de desalento com a mão - Em conclusão, não sou correspondido.
Admira-me que só agora ele tenha inferido isso, mas ainda assim resolvo reforçar a sua brilhante conclusão - Não, não és correspondido.
Durante um momento ele olha-me com aquela expressão de cachorrinho abandonado e eu volto a sentir uma certa dose de pena. Ele afasta a cadeira da mesa e levanta-se devagar - Desculpe qualquer coisa, s'tora.
Eu acompanho-o com o olhar e vejo o seu ar cabisbaixo ao abandonar o polivalente. Quando finalmente desvio os olhos, deparo com outro aluno que, do extremo do pavilhão, me fita insistentemente. É o Joka, o meu aluno surfista, e a sensação que eu tenho é que fui apanhada em falta. Pego rapidamente nas minhas coisas e saio dali em passo apressado. Não sei muito bem explicar porquê mas, de repente, sinto que o meu dia está irremediavelmente estragado."