sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo X

"A minha primeira regência correu relativamente bem e a Fernanda elogiou a minha capacidade comunicativa. No entanto, a aula que a Maria José tinha dado uns dias antes foi muito melhor do que a minha, fundamentalmente, porque a Maria José, à custa de muito esforço e dedicação, consegue imaginar estratégias diversificadas para apresentar a matéria, o que acaba por dinamizar a aula. Eu acho que o único ponto fraco dela é o timbre da sua voz que é fininho e irritante. Colocando de parte esse pormenor, considero que ela vai dar uma excelente professora. A mesma observação não posso fazer relativamente à Teresa, que está claramente em pânico, no meio da sala, incapaz de manter a ordem com as suas admoestações em tom maternal e enrolando-se no seu próprio discurso confuso. Eu, a Luísa e a Maria José trocamos olhares entre nós e observamos a Fernanda que, tal como nós, se encontra sentada no fundo da sala e escreve sem parar no seu caderninho de notas, de capa dura, que nós já conhecemos muito bem. Começo a sentir aquela sensação familiar de embaraço por solidariedade e concluo que não vale a pena apontar nada porque a prestação da Teresa está a ser uma absoluta desgraça. Na carteira ao lado, um aluno tamborila com o lápis na mesa e o ruído começa a irritar-me. Deito-lhe um olhar gelado e, em troca, ele pisca-me o olho. Não sei se devo ficar indignada mas, inevitavelmente, acaba por me assomar um sorriso aos lábios que é prontamente imitado pelo aluno em questão. Volto a olhar para a frente mas passados breves instantes, volto a deitar-lhe uma olhadela dissimulada. Ele tem o cabelo comprido e encaracolado, olhos negros e roupas largas e escuras. A turma é de Artes e eu penso logo que ele tem um verdadeiro estilo de artista. Finalmente o tormento da Teresa chega ao fim e todas nós suspiramos de alívio. O aluno-artista lança-me um sorriso e despede-se com um «tchau, aí!» ao qual eu correspondo, bem-educada, com um «adeus». Acodem-me à lembrança as palavras cautelosas da minha mãe, sempre preocupada com tudo. «Vê lá filha, não dês muita confiança aos alunos; olha que eles têm que te respeitar». Faço uma rápida retrospectiva, tentando avaliar se tenho dado, nas próprias palavras da minha mãe, muita confiança aos alunos. Por vezes, digo coisas das quais depois me arrependo, mas essa forma de agir tem a ver com a minha impulsividade. A ponderação não é uma das minhas virtudes. A Fernanda lembra-nos que temos de reunir para fazer a apreciação da aula da Teresa e juntas dirigimo-nos para a sala que funciona como gabinete do grupo de Filosofia. No seu jeito calmo, a Fernanda começa a tecer algumas considerações acerca da aula e, de um a forma objectiva, aponta-lhe os aspectos onde ela falhou. A Teresa acena afirmativamente com a cabeça, consciente de que as críticas são justas e adianta, como explicação para o que se passou, o nervosismo que a assaltou por saber que estava a ser observada e avaliada. A Fernanda pede a nossa opinião e nós, a contra gosto, porque é sempre complicado falar de alguém que está nas mesmas circunstâncias, acabamos por corroborar as ideias gerais dela. A Teresa está visivelmente cabisbaixa e nós consolamo-la, dizendo que a próxima correrá certamente melhor. A Fernanda termina a reunião, relembrando-nos da importância de termos o nosso dossier de estágio perfeitamente em ordem porque no final do mês teremos a primeira visita do formador da universidade que virá para assistir às nossas aulas. Uma onda de pânico invade-nos e eu sinto aquele típico ardor no estômago. Despedimo-nos umas das outras e eu encaminho-me para a sala de professores para navegar um pouco na net. Resolvo visitar pela quinquagésima vez o site do carro que eu quero, ou melhor, do carro que posso ter, oferta dos meus pais. Os pais são engraçados: dizem-nos que podemos escolher um carro, mas depois impõem uma série de restrições e nós acabamos por escolher não aquilo que queremos, mas aquilo que eles subtilmente sugerem. Penso, com pena, que vou mesmo ter que dizer adeus ao carro dos meus sonhos e ficar com a realidade, bem menos atractiva mas muito mais baratinha."