sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo XVI

"Os alunos estão animados com a perspectiva de um dia diferente e ouvem-se grandes gargalhadas no meio de uma algazarra generalizada. Lembro-me que quando andava no secundário também adorava visitas de estudo e, inevitavelmente, eu e as minhas amigas acabava mos sempre por arranjar grandes paixões nessas ocasiões. Depois de circular pelo autocarro fazendo alguns avisos aos alunos do tipo «nada de bebidas» e «não se fuma no autocarro», sento-me junto da Henriqueta e da Luisinha, alunas de Artes da minha orientadora de estágio, e a nós junta-se também o Bruno, o aluno das piscadelas de olhos maliciosas. Falamos de piercings, de tatuagens e de música e num momento de silêncio eu reflicto na razão que me leva a adorar a companhia dos adolescentes em detrimento da companhia dos meus colegas de profissão, mas a resposta para isso já eu sei há algum tempo: interesses comuns. A ideia que eu tenho é que a maior parte dos meus colegas de profissão estão demasiado preocupados em manter uma postura que camufle o seu verdadeiro eu ou então, e essa será a pior alternativa, esqueceram por completo o seu lado mais genuíno e a altura em que também eles eram jovens adolescentes. Mesmo que eu não sentisse uma grande afinidade com os meus alunos, tenho a certeza que, dentro dos possíveis, iria sempre tentar colocar-me no lugar deles e penso que se todos o fizessem, muitas situações desagradáveis e desentendimentos poderiam ser evitados. Por vezes, a falta de aproveitamento dos alunos não está relacionada com as poucas capacidades, mas sim com a desmotivação, interesses paralelos, ambiente familiar degradado ou outro qualquer factor circunstancial e tudo isso tem que ser tido em conta quando se pretende avaliar o perfil de um aluno. No entanto, esta tarefa não é fácil porque com uma média de trinta alunos por turma torna-se muito complicado para o professor fazer um acompanhamento mais individualizado dos alunos. Volto à realidade porque o Bruno, descarado como sempre, me entreabre ligeiramente o casaco de gsnga. Pergunto-lhe logo o que é que ele pensa que está a fazer e ele diz-me para eu «não stressar» porque ele só quer ver a minha sweat-shirt. Continua a falar e diz que não me vai mais chamar «s'tora» porque afinal eu não sou professora dele. Eu fico mais ou menos alarmada e digo-lhe que não é bem assim porque, na verdade, quando há regências eu vou dar aulas à turma deles. Ele deita-me um olhar desdenhoso e atira-me - Pensei que eras diferente! Não me digas que ligas a essa merda de títulos?!A Henriqueta e a Luisinha repreendem-no, quase em uníssono - Oh Bruno, francamente!Eu decido que não vou passar por enjoada - OK, eu não me importo que vocês me tratem por Mel.O Bruno passa a mão pelos seus compridos e encaracolados cabelos negros, como se os estivesse a acariciar, e sinto que o olhar dele me percorre todo o corpo. Acabamos por cruzar os olhares e há algo no seu rosto que eu não consigo muito bem definir: desafio, talvez? Ao fim de uns breves segundos a sua expressão altera-se e lança-me um sorriso que deixa a descoberto uma fileira de alvos dentes.O resto da viagem decorre sem incidentes e chegados a Lisboa visitamos o que estava programado e ao final do dia, antes de partirmos de regresso a Coimbra, instalamo-nos numa esplanada. A maior parte dos alunos está por ali e a Henriqueta lança um olhar de desprezo ao grupo do Joka, que está acompanhado pela namorada, e comenta com a Luisinha que os «betinhos» chegaram. Eu pergunto-lhe o porquê daquela implicância.- Mel, já viste aquilo? Nitidamente, filhinhos do papá.Aquilo soa-me um bocado a dor de cotovelo e resolvo aprofundar a questão para tentar desfazer aquela impressão - Ah, e vocês também não são filhinhos do papá?- Eles pertencem a outra tribo - observa a Luisinha.- Que tribo? À grande tribo humana, queres tu dizer - contraponho eu - Já falaste com algum deles?Ela abana a cabeça e eu continuo - Estás a ver? Olha, o Joka é muito fixe!- Quem? O Joka, Joka? - pergunta a Henriqueta.Dá-me vontade de rir porque em dois dias é a segunda vez que alguém se refere a ele assim - Sim. Eu acho-o muito simpático.Elas olham as duas em direcção ao sítio onde ele está sentado e riem-se - Nós também o achamos muito simpático, Mel - acrescenta a Luisinha.- Vocês são terríveis!- Dizem que o Joka é fixe, mas aquela namorada dele deve ser uma frívola - diz a Henriqueta.Eu não acredito que ele possa namorar com alguém assim e penso que é a sina das mulheres bonitas serem apelidadas de burras ou supérflua. Elas continuam a trocar impressões entre si sobre o grupo dos «betinhos» até que a Luisinha me pergunta - Se tivesses que escolher, qual preferias? O Bruno ou o Joka?Quase que me engasgo com um gole de Coca Cola que tinha acabado de beber. Tusso e finalmente pergunto - Escolher como?- Assim, a nível físico.Calo-me sem saber o que responder e se devo responder. A imagem do Bruno surge-me imediatamente, como por magia, e eu penso que gosto bastante do aspecto irreverente dele. olho para o Joka que se encontra quase de frente para mim e registo na retina os seus gestos: a forma como ele pega na garrafa de água e a leva aos lábios, a maneira como se recosta na cadeira, ouvindo atentamente a conversa, e o jeito aparentemente descuidado com que as madeixas louríssimas do seu cabelo lhe caem sobre os olhos. Não me apetece desviar o olhar dele e imagino que se pudesse, ficava a tarde toda sentada naquela esplanada a contemplá-lo. - Então Mel? Quem escolhias? - volta a perguntar a Luisinha.Mil pensamentos atravessam-me o espírito e eu penso que devo estar completamente maluca, mas sem hesitar respondo - O Joka, sem sombra de dúvida."

Capítulo XV

"Quando o dia acaba e finalmente chego a casa o meu primeiro pensamento vai para o cd religiosamente guardado na minha sacola. Descalço as botas e massajo suavemente os pés, tentando decidir o que vou fazer em primeiro lugar: comer, arrumar o quarto, planificar aulas, telefonar ao Jorge ou visionar o cd? Opto, mais depressa do que devia, pela última alternativa. Puxo as orelhas da cama para cima, ligo o meu portátil e sento-me recostada contra uma almofada. Insiro com cuidado o cd e fico ansiosamente à espera que algo aconteça. As imagens sucedem-se e assisto ao que parece ser uma prova de surf. Num esforço de visão parece que reconheço o Joka e quase hipnotizada nem dou pelo tempo a passar. Quando o cd chega ao fim, desligo o computador e assalta-me uma melancolia estranha. De repente, é como se toda a minha vida não tivesse sentido e eu não fizesse nada mais do que desfilar perante momentos sucessivos de tempo que se atravessam à minha frente. Penso no curso que escolhi e interrogo-me se a saída profissional que ele me proporcionou é mesmo aquela que eu ambicionava. Concluo, como já conclui outras vezes, que não sei responder a esta questão aparentemente tão simples. Escolhi Filosofia porque gostava de ler e achei piada aos filósofos gregos, mas nunca equacionei a possibilidade de vir a ser professora. Na altura, a única coisa que eu queria era continuar a estudar, independentemente do futuro que esse curso me pudesse proporcionar. Agora que estou perante aquilo que ele me ofereceu, pondero se é mesmo isto que quero fazer durante os próximos anos. Sinto que não tenho nada que me apaixone verdadeiramente, a não ser, a música, a leitura e a escrita (mas mesmo esta é pouco consistente) e que estou confinada ao meu pequeno mundo, convencida que ele é melhor do que o dos outros. A aridez da minha vida resume-se a sair com as minhas amigas e o meu namorado, ir de férias de quando em quando e achar que isso é fantástico. Não tenho nenhum projecto que tome conta de todo o meu ser (como, por exemplo, tem o Joka que é apenas um puto de dezassete anos)do qual não possa prescindir e tenho a sensação que tudo o que vivi até ao momento é fútil e desinteressante. Reflicto no que gostaria de fazer se me dessem a escolher ou se ganhasse o Euromilhões, mas a verdade é que não faço a mais pálida ideia. Certamente se a mesma pergunta fosse feita a outras pessoas, muitas apontariam logo mil e um projectos que gostariam de ver realizados, mas eu, por mais que pense, não consigo encontrar o meu grande sonho. Sinto-me mal, terrivelmente mal e apetece-me amaldiçoar o cd do Joka que despoletou este pequeno drama existencial.(...)Encontro-me sentada à mesa do café, com o Jorge em frente, e continuo dominada por aquela sensação de apatia mortal que me tomou de assalto no dia anterior. Estou em silêncio, sem vontade de falar, e respondo a conta-gotas às perguntas que ele me faz. Insiste para que eu lhe conte o que tenho e resolvo confidenciar-lhe as minhas angústias - Percebes, Jorge, é como se a minha vida não tivesse um propósito. Não há nada em que eu me destaque. Por exemplo, tu tens um dom- a tua voz- e a tua vida tem um sentido. Se não cantares é como se te faltasse o oxigénio para respirar, não é? É como o Joka...Ele interrompe-me - Quem é o Joka?- O Joka é meu aluno e diz que precisa do surf para viver, tal como tu precisas da música e o David Fonseca da escrita.O Jorge esboça uma expressão algo confusa - David Fonseca? O dos Silence Four?- Sim, mas os Silence Four já não existem. Mas isso não interessa. A questão é que também ele tem um objectivo claro na sua vida e ele não escreve porque quer, mas porque precisa.- Mel, apresentaste-me três exemplos no meio de biliões de pessoas que existem e que, se calhar, passam exactamente pelas mesmas dúvidas que tu tens. E já que falaste do meu próprio caso, também te posso dizer que não que não sei se quero fazer da música a minha vida, ou seja, não tenho um projecto definido.- É diferente. Não sabes se queres fazer da música a tua vida mas, no entanto, tens a música. Eu não tenho nada.O Jorge abana a cabeça em claro sinal de discordância - Como não tens nada?- Nada assim que me venha das entranhas, que seja um apelo telúrico ao qual eu não possa fugir - explico - Tudo o que aprecio na vida é sempre no papel de uma simples espectadora. Gosto de música mas não sei compor nem cantar e, portanto, limito-me a ouvi-la. Adoro a escrita mas acho que que a minha não tem qualidade suficiente, por isso limito-me a ler o que outros escrevem. Gosto de teatro mas não sei representar e então asssisto às peças que os outros interpretam.- E as aulas? Não te preenchem? Não és boa naquilo que fazes?Encolho os ombros - As aulas não me preenchem e acho que não sou boa naquilo que faço porque não me esforço e o não me esforçar leva-nos ao início da questão: não me esforço porque as aulas não me preenchem. É um círculo vicioso, percebes? - depois disto fecho-me num silêncio que eu sei que para o Jorge é desagradável mas a realidade é que não me apetece falar mais sobre isto. Pode ser que que mais uma noite de repouso apague em mim este desconforto que me está a dilacerar por dentro."

Capítulo XIV

"- Olá Joka! Já não morres hoje, nem casas amanhã!Ele olha para mim confuso e eu resolvo elucidá-lo - Ainda agora estive a falar em ti.Ele esboça um ligeiro sorriso - A sério?- Quer dizer, não fui propriamente eu que falei. Foram duas meninas com os corações despedaçados.
Ele atira um pouco a cabeça para trás e ri-se. Vê-se que tem noção do efeito que provoca nas adolescentes.
- E as tuas férias, foram boas? - pergunto por delicadeza.
- Foram. Deu para ganhar ânimo para mais uma etapa.
Apetece-me perguntar-lhe se é verdade que ele foi surfar para fora mas, ao mesmo tempo, receio que ele me ache uma metediça; no entanto, a minha indecisão fica resolvida quando ele me pergunta - Já foi à Florida, professora?
Dá-me vontade de atirar uma gargalhada bem alto mas contenho-me - Não, nunca fui à Florida.
- Então não vá. Estive lá a semana passada e fiquei desiludido. Valeu a pena só pela sensação de sentir o sal na pele.
Quando ele diz aquilo, sinto uma espécie de arrepio a percorrer-me o corpo e mentalmente interrogo-me de onde é que ele caiu. Fito-o demoradamente sem saber muito bem o que dizer, porém mais uma vez ele decide por mim - A professora desculpe-me. Não queria parecer pedante. Saiu-me naturalmente.
Começo a achar desconcertante a forma como ele consegue "ler" os meus silêncios e por isso digo rapidamente - Não me pareces pedante, mas sim autêntico.
Ele torna a esboçar um leve sorriso - Obrigado, professora. Bem, vou indo...
Num impulso detenho-o - Espera. Que sítio me aconselharias?
- O Maui, sem sombra de dúvidas - os olhos negros dele cintilam quando fala - A professora talvez prefira o Bali.
- Obrigada. Não me vou esquecer das tuas sugestões quando tiver dinheiro suficiente para fazer uma viagem dessas.
Ele ajeita o gorro ao mesmo tempo que me pergunta - A professora sabe o que eu faço, não sabe?
Abro a boca para responder mas ele não me dá tempo - O surf é a minha vida, professora. Preciso dele como do ar para respirar.
Sinto-me estúpida - Claro. Não quis insinuar que viajasses por simples divertimento. Já te disse que te acho autêntico e, em certa medida, invejo essas tua paixão. Gostava de me sentir assim arrebatada por algo - arrenpendo-me de ter falado tanto e decido que está na hora de pôr fim à conversa - Vou indo. Daqui a pouco temos aula, não é?
- Gostava de lhe emprestar uma coisa, professora.
Sou apanhada de surpresa e não consigo imaginar o que é que ele me poderá querer emprestar. Ele abre a sacola que traz a tiracolo e depois de procurar entre os livros estende-me um cd. Eu agarro-o e olho interrogativamente à espera de uma explicação.
- Quando vir essas imagens vai compreender melhor o que eu quero dizer.
Guardo o cd e só agora me lembro de engolir o café que ficou esquecido em cima do balcão e que está completamente frio.
- Até já! - despede-se ele.
-Até já! - retribuo. Saio igualmente do polivalente com vontade que o dia que acabou de começar, acabe depressa! "

Capítulo XIII

" Acordo com os olhos inchados e uma subtil dor de cabeça. Abro a persiana e constato, com decepção, que está um dia cinzento, daqueles com uma chuvinha miudinha e embirrenta. Tomo um duche rápido, enfio umas calças de ganga e uma camisola de gola alta, dou uma escovadela rápida ao meu desgrenhado cabelo e termino calçando umas botas e vestindo um kispo verde. Pego na minha sacola, que tive a inteligência de deixar preparada na noite anterior, e preparo-me para sair. Lembro-me que falta o perfume e volto atrás, atirando pequenos jactos à toa. Sem perfume, sinto-me despida. Volto a abrir a porta da rua mas mais uma vez recuo. Agora esqueci-me da chave do carro. É falta de hábito. Finalmente consigo reunir tudo o que preciso e depois de descer as escadas a correr, instalo-me, o mais confortavelmente possível, ao volante do meu carro a estrear. Conduzo, com um certo receio, por entre o trânsito da cidade, congestionado a esta hora da manhã, e sinto uma sensação de alívio ao chegar incólume à escola. Encontro duas alunas do 10º ano que me perguntam se as férias foram boas e entramos juntas, tagarelando sobre prendas e passagens de ano. Assusto-me quando uma delas solta um gritinho histérico - S'tora, deixe-me assistir à sua aula do 11º ano.
Olho espantada para ela - A que propósito? Não sabia que gostavas assim tanto de Filosofia.
A amiga responde por ela - Não, s'tora. Ela gosta mesmo é do Joka.
A outra volta a soltar uma risadinha - Olhe para ele, s'tora! Ele é tão lindo!
Olho na mesma direcção e realmente vejo o meu aluno Joka a caminhar, no seu jeito algo displicente, com as mãos enfiadas num Kispo volumoso e um gorro enfiado até às orelhas que lhe deixa apenas de fora as pontas louríssimas do seu cabelo. Não lhes digo nada mas interiormente concordo com elas; ele é muito bonito e tem "montes" de estilo. O rosto continua fortemente bronzeado, transmitindo saúde e lembrando o Verão que, penso eu com tristeza, ainda está tão longe.
- Sabe, ´s'tora, ele viaja pelo mundo todo. Ainda agora esteve naquele sítio... Como é que se chama, Andreia?
- Ai, não sei. Já não me lembro do nome.
- É aquele sítio, s'tora... - enruga a testa num esforço de memória - Não interessa. Daqui a pouco já me lembro.
- E como é que vocês sabem isso tudo? - inquiro com curiosidade.
- Ó s'tora, a Andreia tem um primo que é amigo dele e depois o primo conta à Andreia e prontos.
- Ah, já percebi - digo eu, nada admirada com o sistema de informações delas. Na minha altura de estudante funcionava exactamente da mesma maneira - Mas olha lá, Marisa, cuidado que ele tem namorada!
Ela faz um ar de desdém- É uma pindérica!
Dá-me vontade de rir porque o argumento utilizado é invariavelmente o mesmo, mudando apenas o adjectivo - Não é nada pindérica! Até é muito gira!
A Marisa faz um ar amuado mas, ao mesmo tempo, resignado - 'Tá bem, s'tora, é gira. Mas não interessa, é uma betinha!
Eu encolho os ombros - Pindérica ou betinha, é com ela que ele namora.
A Andreia dá um encontrão à amiga - É isso mesmo s'tora! Ouviste, ó estúpida? - acrescenta.
Faço um gesto de despedida com a mão e dirigo-me em passo apressado para o polivalente para ainda tomar um café antes da aula. Há pouca gente em frente ao balcão do bar e sou prontamente atendida. Despejo com cuidado o pacote de açucar na chávena e sou interrompida por um cumprimento - Bom dia, professora! As férias, foram boas?
Nem sequer preciso de olhar para saber quem é. Só há um aluno que me chama assim - o Joka..."

Capítulo XII

"Sinto uma dor e cerro os dentes.
- Ora, cá está! Agora é só... e, pronto! Vá, vê-te lá ao espelho!
Levanto-me da cadeira, sentindo um ligeiro ardor na pele e olho-me ao espelho. O piercing minúsculo brilha no meu nariz e dá-me uma incontornável vontade de rir ao imaginar a reacção do formador da próxima vez que for assistir a uma aula minha. Na verdade, se hoje acabei de fazer mais um piercing, posso dizer que o devo ao referido senhor. Tudo se passou na reunião que aconteceu depois de mais uma ronda de assistências. Quando chegou a minha vez de ser avaliada, ele não foi nada complacente e, pura e simplesmente, arrasou-me. Disse que eu tinha cometido erros científicos, que não tinha evoluído nada desde a última assistência e que me tinha arriscado a ouvir algo menos próprio pela forma como respondi a um aluno. Fiquei um pouco surpreendida com uma crítica tão acutilante porque a percepção com que eu tinha ficado é que a aula não tinha corrido assim tão mau. Ainda assim, não contra-argumentei, decidida a ouvir pacientemente e em silêncio as observações dele. Mas depois ele começou a tecer comentários acerca da forma como eu me arranjava, acrescentando que não era a mais adequada para uma professora. Desancou nos meus jeans e nas minhas All Star e terminou dizendo que eu tinha que perceber que já não estava na faculdade, mas sim num local onde tinha responsabilidades. Comecei a sentir o nervosismo a tomar conta de mim e não me contive, acabando por lhe dizer que a indumentária não estava directamente relacionada com a competência científica de uma pessoa e se, relativamente à avaliação da minha aula, eu não tinha dito nada, no entanto, considerava que a forma como eu me vestia era uma questão pessoal que não era para ali chamada. Ele tirou os óculos e olhou para mim, espantado, e eu fiquei com a sensação que ele não estava habituado a ser afrontado. A Fernanda tentou deitar água na fervura, dizendo que aquilo era apenas um pormenor sem importância, mas eu não desarmei e insisti na minha ideia, reforçando que não ia abdicar da minha autenticidade em favor de convenções sem sentido. O formador voltou a colocar os óculos, a meio do seu nariz bolboso, e no seu tom falsamente paternal aconselhou-me a ouvir com mais atenção o que pessoas com mais experiência do que eu tinham para dizer. A Fernanda voltou a intervir, de uma forma peremptória, pondo fim à discussão e eu não voltei a abrir a boca, decidindo naquele preciso momento que a minha resposta iria ser dada na próxima assistência. Aquele piercing era a minha tomada de posição. Sei que a partir deste momento o meu estágio está perigosamente em risco, mas a verdade é que eu não posso permitir que um catedrático antiquado me discrimine, só pelo facto de eu não usar uma saia que suba o suficiente para que ele possa deitar olhadelas lúbricas às minhas pernas como faz com as minhas colegas.
- Obrigada Fred! Ficou óptimo!
Ele faz-me uma espécie de vénia e devolve o agradecimento - Obrigado eu. Ficaste linda. E a tatto, é para quando?
Eu rio-me antes de lhe responder - Para isso, ainda preciso de arranjar coragem.
Pago os serviços do Fred e saio, sentindo-me o máximo com o meu novo piercing. A única coisa que me preocupa vai ser a reacção da minha mãe. Para lhe dizer que tinha um piercing no umbigo deixei passar um ano inteiro e aproveitei a noite de Natal, quando a família estava toda reunida, para lhe dar conhecimento. Assim, ela não teve grandes hipóteses de ter um ataque. Agora este, não vai dar mesmo para esconder."

Capítulo XI

"Sempre que penso na relatividade do tempo, acode-me à lembrança "A Persistência da Memória" de Dali. Quando tomo consciência, percebo que estou no final do 1º período, mas se olhar para trás, ainda ontem era o primeiro dia de Setembro. Tive a minha primeira aula assistida pelo formador da Universidade, que não correu bem nem mal; convidei, pela primeira vez, um aluno a sair da sala de aula (o Bruno, um aluno gordinho do 10º ano que gosta de medir forças comigo) e estou, pela primeira vez na minha vida, a decidir uma pequena parte do futuro dos meus alunos, no complicado processo que é atribuir classificações de zero a vinte. É o que eu faço neste preciso momento, sentada numa mesa redonda do polivalente, com o dossier do professor aberto à minha frente e um café ao lado. Não é usual um professor sentar-se ali, por isso, os poucos alunos que por ali circulam, olham-me com algum espanto, mas eu prefiro enfrentar os seus olhares de surpresa do que ouvir as intermináveis histórias das minhas colegas ou, então, ser pela vigésima vez, convidada a contribuir para mais uma campanha "não sei das quantas", por uma implicativa colega de Educação Física que acha que as pessoas não têm mais nada para fazer ao dinheiro. Comparo mais uma vez as classificações de dois alunos, acerca dos quais tenho dúvidas, e mantenho uma certa preocupação, temendo não estar a ser completamente justa. Mordisco a ponta do lápis, num claro sinal de indecisão, e espero que desça sobre mim alguma luz que me ilumine, mas o que subitamente sinto é precisamente uma sombra. Ergo os olhos e deparo com o Lindo, parado à minha frente. Instintivamente fecho o dossier e espero que ele se decida a dizer alguma coisa. Noto algum nervosismo estampado no seu rosto e interrogo-me sobre o motivo dele estar ali especado a olhar para mim.
- Posso falar consigo, s'tora? - resolve-se ele finalmente.
Resolvo jogar pelo seguro - Se é por causa da tua nota, é melhor esperares pela aula para conversarmos acerca desse assunto.
- Não é por causa da nota. É uma outra coisa.
Olho surpreendida para ele e penso que outro assunto é que ele pode ter para tratar comigo e que o deixa à beira de um ataque de nervos. Ele puxa uma cadeira e senta-se mesmo à minha frente, apoiando o queixo entre as mãos. De repente, uma terrível suspeita começa a apoderar-se de mim e começo a sentir-me horrivelmente desconfortável.
- O que tenho para lhe dizer é particular.
As minhas suspeitas adensam-se e recosto-me na cadeira numa tentativa de aumentar a distância entre nós.
- Certamente já reparou que eu gosto muito de si...
Resolvo interrompê-lo - Ainda bem. Gosto que os meus alunos gostem de mim.
- S'tora, eu gosto de si de uma outra maneira.
Tremo só de pensar no que se seguirá, mas não me ocorre nada de inteligente para dizer.
- S'tora, estou apaixonado por si.
Levo um susto e apesar de já estar praticamente a adivinhar o que ele ia dizer, espanta-me a audácia dele. Percebo que a bola está agora do meu lado porque depois de fazer aquela revelação, o Lindo fechou-se num silêncio pesado. Decido abordar o asunto diplomaticamente - Lindo, provavelmente estás a fazer uma grande confusão. É natural os alunos sentirem alguma admiração pelos seus professores...
Ele abana energicamente a cabeça - S'tora, isso aplica-se a miúdos do 7º ano. Eu tenho 19 anos e sei muito bem o que é estar apaixonado.
O argumento dele desarma-me mas não me posso dar por vencida - Ainda assim. Eu penso que estás a projectar em mim... - mais uma vez não consigo acabar a minha frase.
- Eu ando sempre à sua procura para ver se a vejo. Aos fins-de-semana sinto a sua falta e não paro de pensar em si, portanto, gostava que me levasse a sério.
Vejo que não tenho escapatória possível e que vou ter de falar a mesma linguagem que ele - Olha Lindo, em primeiro lugar, acho que a escola não é o local mais adequado para ter esta conversa, mas já que tomaste a iniciativa eu vou dizer-te o que penso.
Ele suspira fundo, certamente ansioso por saber o que eu vou dizer a seguir e eu prossigo implacável - Respeito o teu sentimento mas deves saber que ele não é correspondido. Gosto de ti como gosto de todos os meus alunos, mas nada mais do que isso.
Ele morde os lábios e eu sinto uma certa pena dele mas não sei que mais lhe posso dizer. Ele acaba por me poupar esse trabalho - Se eu não fosse seu aluno era possível gostar de mim?
É a minha vez de suspirar - É uma questão que não se pode colocar nesses termos.
Ele esboça um gesto de desalento com a mão - Em conclusão, não sou correspondido.
Admira-me que só agora ele tenha inferido isso, mas ainda assim resolvo reforçar a sua brilhante conclusão - Não, não és correspondido.
Durante um momento ele olha-me com aquela expressão de cachorrinho abandonado e eu volto a sentir uma certa dose de pena. Ele afasta a cadeira da mesa e levanta-se devagar - Desculpe qualquer coisa, s'tora.
Eu acompanho-o com o olhar e vejo o seu ar cabisbaixo ao abandonar o polivalente. Quando finalmente desvio os olhos, deparo com outro aluno que, do extremo do pavilhão, me fita insistentemente. É o Joka, o meu aluno surfista, e a sensação que eu tenho é que fui apanhada em falta. Pego rapidamente nas minhas coisas e saio dali em passo apressado. Não sei muito bem explicar porquê mas, de repente, sinto que o meu dia está irremediavelmente estragado."

Capítulo X

"A minha primeira regência correu relativamente bem e a Fernanda elogiou a minha capacidade comunicativa. No entanto, a aula que a Maria José tinha dado uns dias antes foi muito melhor do que a minha, fundamentalmente, porque a Maria José, à custa de muito esforço e dedicação, consegue imaginar estratégias diversificadas para apresentar a matéria, o que acaba por dinamizar a aula. Eu acho que o único ponto fraco dela é o timbre da sua voz que é fininho e irritante. Colocando de parte esse pormenor, considero que ela vai dar uma excelente professora. A mesma observação não posso fazer relativamente à Teresa, que está claramente em pânico, no meio da sala, incapaz de manter a ordem com as suas admoestações em tom maternal e enrolando-se no seu próprio discurso confuso. Eu, a Luísa e a Maria José trocamos olhares entre nós e observamos a Fernanda que, tal como nós, se encontra sentada no fundo da sala e escreve sem parar no seu caderninho de notas, de capa dura, que nós já conhecemos muito bem. Começo a sentir aquela sensação familiar de embaraço por solidariedade e concluo que não vale a pena apontar nada porque a prestação da Teresa está a ser uma absoluta desgraça. Na carteira ao lado, um aluno tamborila com o lápis na mesa e o ruído começa a irritar-me. Deito-lhe um olhar gelado e, em troca, ele pisca-me o olho. Não sei se devo ficar indignada mas, inevitavelmente, acaba por me assomar um sorriso aos lábios que é prontamente imitado pelo aluno em questão. Volto a olhar para a frente mas passados breves instantes, volto a deitar-lhe uma olhadela dissimulada. Ele tem o cabelo comprido e encaracolado, olhos negros e roupas largas e escuras. A turma é de Artes e eu penso logo que ele tem um verdadeiro estilo de artista. Finalmente o tormento da Teresa chega ao fim e todas nós suspiramos de alívio. O aluno-artista lança-me um sorriso e despede-se com um «tchau, aí!» ao qual eu correspondo, bem-educada, com um «adeus». Acodem-me à lembrança as palavras cautelosas da minha mãe, sempre preocupada com tudo. «Vê lá filha, não dês muita confiança aos alunos; olha que eles têm que te respeitar». Faço uma rápida retrospectiva, tentando avaliar se tenho dado, nas próprias palavras da minha mãe, muita confiança aos alunos. Por vezes, digo coisas das quais depois me arrependo, mas essa forma de agir tem a ver com a minha impulsividade. A ponderação não é uma das minhas virtudes. A Fernanda lembra-nos que temos de reunir para fazer a apreciação da aula da Teresa e juntas dirigimo-nos para a sala que funciona como gabinete do grupo de Filosofia. No seu jeito calmo, a Fernanda começa a tecer algumas considerações acerca da aula e, de um a forma objectiva, aponta-lhe os aspectos onde ela falhou. A Teresa acena afirmativamente com a cabeça, consciente de que as críticas são justas e adianta, como explicação para o que se passou, o nervosismo que a assaltou por saber que estava a ser observada e avaliada. A Fernanda pede a nossa opinião e nós, a contra gosto, porque é sempre complicado falar de alguém que está nas mesmas circunstâncias, acabamos por corroborar as ideias gerais dela. A Teresa está visivelmente cabisbaixa e nós consolamo-la, dizendo que a próxima correrá certamente melhor. A Fernanda termina a reunião, relembrando-nos da importância de termos o nosso dossier de estágio perfeitamente em ordem porque no final do mês teremos a primeira visita do formador da universidade que virá para assistir às nossas aulas. Uma onda de pânico invade-nos e eu sinto aquele típico ardor no estômago. Despedimo-nos umas das outras e eu encaminho-me para a sala de professores para navegar um pouco na net. Resolvo visitar pela quinquagésima vez o site do carro que eu quero, ou melhor, do carro que posso ter, oferta dos meus pais. Os pais são engraçados: dizem-nos que podemos escolher um carro, mas depois impõem uma série de restrições e nós acabamos por escolher não aquilo que queremos, mas aquilo que eles subtilmente sugerem. Penso, com pena, que vou mesmo ter que dizer adeus ao carro dos meus sonhos e ficar com a realidade, bem menos atractiva mas muito mais baratinha."

Capítulo IX

"Ele faz um gesto de assentimento com a cabeça e agradece - Obrigada, professora.
Dito o sumário e dou início à aula começando pela correcção do trabalho de casa. A Isabel, uma aluna extremamente bonita, dona de uns cristalinos olhos azuis, põe o dedo no ar - S'tora, eu li o texto em casa mas não consegui perceber muito bem a distinção entre a validade formal e material de um raciocínio.
- Muito bem, vamos lá ver isso - Durante meia-hora volto a explicar a diferença entre a forma e a matéria de um raciocínio e no final passo uma série de exercícios no quadro - O que eu quero que vocês façam é o seguinte: têm de avaliar estes raciocínios do ponto de vista formal e do ponto de vista material e justificar. Alguma dúvida?
Alguns alunos abanam negativamente a cabeça e começam a copiar do quadro os exercícios.
- Quinze minutos para a realização da tarefa - informo. Enquanto os alunos se afadigam na resolução dos exercícios , eu aproveito para observar melhor o novo aluno: o que mais se destaca nele é o cabelo louro - quase branco- que lhe cai em madeixas sobre os olhos e contrasta fortemente com a tez bronzeada. Ele está reclinado sobre o caderno e quando levanta a cabeça para copiar os exercícios do quadro, olha por entre os fios de cabelo, fazendo um trejeito para o lado. Um dos pulsos está adornado por várias pulseiras, feitas de missangas coloridas, e no outro destaca-se um grande relógio. Continuo a minha observação fascinada pelo estilo dele: as sapatilhas são da mesma cor da tee-shirt laranja, de uma marca de surf, e as calças apresentam uma profusão de bolsos. Ele volta a levantar a cabeça mas, desta vez, olha na minha direcção. Não sei se está a olhar directamente para mim porque não lhe consigo vislumbrar os olhos, mas por causa das dúvidas resolvo desviar a trajectória do meu olhar. O resto da aula, entre a correcção das tarefas e a continuação da matéria, passa num ápice. O toque estridente da campainha assinala o seu final e eu reúno rapidamente as minhas coisas, desejosa de tomar um café e ir para casa. Atravesso o átrio e dirijo-me directamente para o polivalente que é o local onde funciona o bar, tanto para alunos como para professores o que significa que há sempre uma grande confusão e barulheira, condimentada pela música da rádio da escola. Cruzo-me com alguns alunos do 10º ano que me lançam um sorriso e espero pacientemente pela minha vez de ser atendida. O grupo de alunos que está à minha frente é finalmente atendido e eu desvio-me para o lado para lhes dar passagem. Quando faço o movimento para me recolocar na fila alguém choca comigo. Preparo-me para deitar um olhar mal-humorado ao autor do empurrão mas ouço uma voz a dizer - Desculpe, professora.
Deparo com o meu aluno surfista parado mais ou menos ao meu lado. Ele afasta o cabelo dos olhos e vejo que são escuros, quase pretos. Quase podia jurar que ele tinha olhos azuis mas afinal nem todos os surfistas são louros, de olhos azuis. É bem mais alto do que eu e eu preciso de erguer ligeiramente a cabeça para falar com ele.
- Não a magoei, pois não?
Percebo que passou algum tempo entre o encontrão e a pergunta e que devo estar a fazer figura de parva, especada a olhar para ele - Não, não - respondo finalmente. Peço o meu café à funcionária de ar pouco simpático e encosto-me para o lado para lhe dar lugar. Ele pede um snack e após ser atendido atira-me um «até amanhã, professora». Devolvo-lhe a frase e começo a achar piada à sua boa-educação. Distraída com estes pensamentos, escaldo-me na chávena e interiormente solto um palavrão. Mexo e remexo o café, à espera que arrefeça, e enquanto isso o meu aluno volta a entrar no meu campo de visão. Está acompanhado por uma teenager de sedosos cabelos castanhos, alta e esguia. Ele passa-lhe um braço por cima dos ombros e eu percebo que será, certamente, a sua namorada. Fazem um casal bonito e eu penso que podiam fazer um daqueles anúncios, sempre repletos de jovens atraentes e cheios de estilo. Bebo, finalmente, o café e antecipo, com prazer, a imagem da minha cama aconchegante e do fim-de-semana que se avizinha. Decido mentalmente que nem que as minhas amigas me venham convidar para uma festa em Marte eu acederei a ir com elas. Irei passar os dois dias a dormir e a trabalhar para o estágio e cheia de convicção penso que é mesmo isso que tenho a fazer, até porque se aproximam as primeiras regências e eu vou ter mesmo que mostrar trabalho se não quiser ser a ovelha negra do estágio."

Capítulo VIII

"Ao fim de uma ou duas semanas de aulas percebi que a escola é um mundinho à parte que não tem absolutamente nada a ver com a minha realidade. Alguns dos meus colegas de profissão são pouco amistosos e alguns chegam a ser mal-educados, pelo menos, de acordo com as minhas regras básicas de boa convivência. Não me parece uma atitude propriamente cortês não corresponder a um bom-dia. Para além disso, foi com decepção que reparei que as conversas na sala de professores se resumem ou à vida escolar ou então aos maridos e filhos. Os outros grupos de estágio comportam-se como um rebanho obediente e também com eles não é fácil chegar à fala. Restam-me as minhas próprias colegas de estágio, mas curiosamente o meu horário não é coincidente com o delas e raramente nos cruzamos, a não ser quando temos efectivamente de reunir. Foi por ter feito esta constatação que resolvi começar a trazer o meu leitor de mp3 para matar os tempos livres que medeiam entre as aulas que tenho que dar, porque a realidade é que apesar de só ter duas turmas, há dias em que tenho que esperar pelo período da tarde para dar a aula seguinte. A primeira vez que me sentei no sofá e coloquei os headphones nos ouvidos, detectei meia-dúzia de olhares a fitarem-me com uma expressão surpreendida. Apeteceu-me imediatamente dizer-lhes que era mil vezes melhor ouvir Nirvana do que ser bombardeada com conversas de tupperware. Fecho os olhos, concentrando-me na música e tentando abstrair-me de tudo o que me rodeia, deixando o meu pensamento vaguear. Passados uns momentos abro os olhos e deito uma olhadela em redor, como para verificar se alguém me está a ler a mente. Noto que um colega me observa mal disfarçadamente e percebo que já não é a primeira vez que isso acontece. Não faço a mínima ideia de qual seja o nome dele, nem qual a disciplina que lecciona, mas também não estou muito interessada nesses pormenores. Torno a cerrar os olhos e delicio-me com a música. Como oportunamente referiu a minha amiga Maria «a vida sem música é como umas cuecas sem elástico». Na sua simplicidade, que é um apanágio próprio dela, a Maria acaba sempre por dizer grandes verdades. Imersa na música, o tempo acaba por passar rapidamente e preparo-me para a última aula do dia. Ao fim de meia-dúzia de aulas com as minhas turmas, o nervosismo inicial desapareceu completamente dando lugar a uma absoluta tranquilidade e é com naturalidade que atravesso o recreio, abrindo caminho entre bandos de miúdos barulhentos do 7º ou 8º ano. A minha turma do 11º ano espera-me junto à porta da sala e mentalmente esboço um sorriso. Como na última aula marquei três ou quatro faltas por atraso, hoje tenho uma comitiva de recepção. De facto, nada como passar à acção, ao invés de ameaçar eternamente e nada fazer. Alguns cumprimentam-me com um «olá s'tora» e o Lindo prontamente vem oferecer-me a sua ajuda para abrir a porta da sala. Respondo-lhe amavelmente que não precisa de se incomodar porque eu sou perfeitamente capaz de abrir uma simples porta. Deixo os alunos entrar antes de mim e depois de todos estarem dentro da sala fecho a porta. Foi uma estratégia que comecei a pôr em acção logo depois da terceira ou quarta aula, quando percebi que muitos deles ficavam na conversa à porta da sala e iam entrando aos poucos o que tinha como consequência eu não conseguir começar a aula enquanto todos não estivessem dentro da sala. Ainda não consegui acabar com a barafunda inicial, mas já aprendi a aproveitar para escrever o sumário enquanto eles tiram e não tiram os cadernos e depois é só ditá-lo quando eles já tiverem sossegado. É o que me preparo para fazer quando ouço um «posso professora?». Levanto os olhos em direcção à porta e deparo com um aluno, numa atitude expectante, com os livros debaixo do braço e um leve sorriso desenhado no rosto bronzeado. Os outros alunos começam imediatamente numa gritaria do tipo «Ei Joka! Tudo bem?». Imponho o silêncio e o Fernando sempre solícito informa - É o Joka, s'tora. O nosso colega que estava no Havai - De repente, lembro-me de efectivamente estar um dia destes a marcar falta ao aluno e os outros me terem dito que ele estava a participar num campeonato de surf no Havai. Na altura, achei que devia ser treta , mas agora, olhando para o aluno em questão começo a achar que devia ser mesmo verdade. Reparo que ele continua no umbral da porta à espera e rapidamente convido-o a entrar e a sentar-se num dos lugares que estão livres. Ele senta-se ao pé de uma miúda morena, de cabelo curtinho todo espetado, que faz um ar derretido e recebe olhares de inveja dos outros elementos femininos da turma.
- Como é mesmo o teu nome? - pergunto.
-Miguel, professora, mas todos me chamam Joka. Se a professora não vir inconveniente também gostaria que me tratasse assim.
Antes de eu poder dizer alguma coisa, o Fernando adianta-se - A s'tora não vê nenhum inconveniente, Joka, porque ela chama-se... - hesita, deita um olhar em redor e continua - Ainda não sabemos, mas todos lhe chamam Mel.
Atiro-lhe um olhar quase mortal e ele imediatamente diz - Desculpe, s'tora.
O aluno em questão sorri, de uma forma que eu interpreto como sendo delicada e eu resolvo dar início à aula - Muito bem Joka. Actualiza-te relativamente à matéria e qualquer dúvida que tenhas estou à disposição."

Capítulo VII

"(...) Tento disfarçar o meu entusiasmo e digo qualquer coisa sem interesse à Joana, enquanto pelo canto do olho vejo o vocalista a dar novas indicações aos restantes elementos da banda. O espectáculo continua e, de quando em quando, ele olha para mim e eu começo a achar piada à situação. No final, volto a bater palmas com força. Entretanto, a minha amiga enfia o braço dela no meu e conduz-me de regresso ao balcão do bar. Desta vez é ela a pedir mais dois Bacardis que o «meu barman» regista prontamente no cartão. Atira-me um sorriso e pisca o olho, enquanto atende outros clientes. Quando me viro para abandonar o balcão deparo com o fulano da banda mesmo à minha frente. Tem um copo de cerveja na mão e um sorriso malandro a bailar-lhe nos lábios.
- Tudo bem? - diz, em jeito de cumprimento.
Sou apanhada de surpresa e balbucio uma espécie de resposta também à laia de cumprimento.
- Percebi que gostas de música ou será que me enganei?
- Não, não te enganaste - respondo - Cantas muito bem - aproveito para acrescentar.
- Obrigada - agradece.
Fazemos as apresentações e conversamos um pouco. Enquanto isso, a Joana, impaciente e fartinha de estar ali, propõe que estiquemos a noite e que façamos uma paragem no Alabastro Bar (nota- o único Alabastro Bar que eu conheci ficava no Algarve. Este é inspirado nesse local). O Alabastro é um bar enorme que está aberto, pelo menos, até às quatro da manhã e que tem D.J. e pista de dança. A primeira vez que eu lá fui, à saída, perguntei ao porteiro porque é que aquele local se chamava Alabastro Bar, uma vez que eu não conseguia ver nenhuma diferença entre aquele local e uma discoteca. Ele respondeu-me que se chamava assim porque era um bar. Eu insisti, reiterando a minha ideia de que aquele sítio apresentava as características de uma discoteca. Ele, obtuso, volta a afirmar que é um bar porque se chama Alabastro Bar. Eu digo-lhe que o que ele acaba de fazer é uma petição de princípio e ele fita-me, boquiaberto, talvez julgando-me maluca. Afasto-me dizendo, teimosamente, que aquilo é uma discoteca.
Mais tarde, um amigo informou-me que o Alabastro era considerado bar porque só tinha autorização para estar aberto até às quatro da manhã. Considero que teria sido muito mais simples se o porteiro me tivesse dito isso.
Hesito acerca da sugestão da Joana e penso que tenho mesmo que me deitar cedo porque combinei com as minhas colegas de estágio um encontro para o dia seguinte para elaborarmos uns famigerados testes formativos, mas a minha amiga insiste, secundada pelo Luís (assim se chama o vocalista) que utiliza argumentos pouco plausíveis, do género «eu telefono-te amanhã, para te acordar». Imagino logo que aquilo é apenas uma desculpa para ficar com o meu número de telemóvel, mas acabo por aceder em acompanhá-los. O problema da noite é exactamente este: uma vez na noite é preciso uma grande força de vontade para voltar para casa quando todos os outros se ficam a divertir. Pagamos o consumo e eu aceno um adeus ao barman que finge ficar triste por eu estar de saída. Empurramos a porta e caminhamos para mais uma noite de loucura."

Capítulo VI

"Estou no meu quarto, diante do espelho do armário que me devolve a minha imagem reflectida. Aproximo-me mais e descubro uma inoportuna borbulha no queixo. Uso o lápis corrector e esbato com a ponta dos dedos o excesso de creme. Volto a afastar-me e contemplo-me: o piercing que tenho no umbigo brilha e eu passo levemente a mão por cima dele. O meu piercing tem uma história e foi feito quando eu me apaixonei perdidamente por um rapaz angolano, doce como um dia cálido de Primavera. Acho que estávamos fascinados pelo tom de pele um do outro, pela conjugação do marfim e do ébano e pela sensação que isso provocava em nós. Um dia, decidimos selar o nosso encontro e, em vez de trocarmos alianças, hábito que eu achava detestável, fizemos piercings. Afago-o com carinho enquanto aquelas lembranças me acodem à memória e penso que se não tivéssemos decidido seguir os nossos próprios caminhos, era possível que hoje eu vivesse em Luanda e não na pacífica cidade de Coimbra. No entanto, não foi o medo da violência, da corrupção, da degradação da cidade que me impediram de o acompanhar de regresso à sua terra natal. Foi antes o receio de uma cultura diferente daquela a que eu estava habituada e no seio da qual me tinha tornado gente. Eu que me considerava um baluarte na defesa das minorias, no ataque feroz à xenofobia e ao racismo e na promoção do multiculturalismo, repentinamente ficava apreensiva só com a ideia de viver num país que não fosse aquele onde eu tinha crescido. Não fiquei magoada por ele ter ido sem mim porque compreendi que teambém ele não podia viver para sempre fora da sua terra. Assim, guardei-o na gaveta das recordações reconfortantes e fechei mais um capítulo da minha vida. Isto tinha acontecido há mais de meio ano e desde aí eu não voltara a sair com ninguém. Apetecia-me passar um tempo entregue a mim mesma e ao meu mundo onírico que me alimentava sempre que a tristeza ou a lassidão se apossavam de mim. Os papéis soltos que se acumulavam na minha secretária eram os fiéis depositários desse meu estado de espírito. Hoje, no entanto, acedi aos insistentes apelos da minha amiga Joana e decidi acompanhá-la até a um bar.
Descemos a rua inclinada da minha casa e desembocamos na Praça da República; dali até ao bar são apenas umas centenas de metros o que nos possibilita um agradável passeio a pé para respirar o ar fresco da noite. Apesar de estarmos em Setembro, o tempo continua quente e seco e em Coimbra isso faz-se sentir de uma forma ainda mais intensa e só mesmo a noite acalma a opressiva temperatura. As ruas não apresentam o habitual movimento do tempo de aulas e alguns cafés encontram-se mesmo semi-desertos. É uma cidade pela qual me apaixonei . Gosto das ruas estreitas, talhadas em pedra e ladeadas por fileiras de pequenas casas que se acotovelam. Acho romântico o Jardim da Sereia e o Penedo da Saudade. Adoro o lamento triste das violas que, às vezes, chega até ao meu quarto, levado por uma onda suave de vento. Neste momento, não me imagino a viver em nenhuma outra cidade, ideia que enfurece a minha mãe que considera que eu devo voltar ao sítio onde sempre vivi, assim que termine o estágio. É um problema que eu sei que vou ter de resolver daqui a uns meses.
Chegamos à porta do bar e eu abandono estes pensamentos. Abro caminho, com cuidado, pelo meio de alguns grupos que àquela hora já preenchem o local e dirijo-me ao balcão para pedir uma bebida. Tenho que esperar atrás de uma morena alta e perfumada que haja uma brecha para me poder abeirar, o que acontece daí a uns segundos. Peço um Bacardi, prontamente servido pelo barman, que mo entrega com um sorriso. Estendo-lhe o cartão de consumo que me foi entregue à entrada e ele marca diligentemente uma cruz na respectiva coluna. Devolve-me o cartão e volta a sorrir-me. Eu retribuo e afasto-me, dando lugar a um indivíduo mal encarado. Olho em redor em busca da Joana, mas não a consigo avistar. Terá, certamente, encontrado alguém com quem trocar meia-dúzia de frases, o que não é nada difícil porque ela conhece dezenas de pessoas. Dou um pequeno gole na minha bebida e deixo correr os olhos pelo ambiente. O bar é novo mas não me agrada por aí além, revelando um pretensiosismo barroco com dourados a mais para o meu singelo gosto. Nuns nichos entrecortados na parede repousam alegados deuses do panteão hindu e, num esforço de visão, reconheço Vixnu. A um canto está montado um pequeno palco, que de momento se encontra vazio, apenas com os instrumentos, aguardando pelos seus legítimos donos. Dou mais um gole no meu Bacardi e encolho-me, tentando passar no meio de dois grupos barulhentos. Finalmente, vislumbro a Joana que pelo seu esticar de pescoço também deve andar à minha procura. Aceno-lhe e ela vem ao meu encontro. Aproveito para lhe dizer que o bar não me agrada e que me apetece ir embora. Ela ralha-me e convence-me a ficar, pelo menos, até começar a actuação da banda. Finjo que amuo e termino o Bacardi que aquece no copo. Volto ao balcão e desta vez não tenho que esperar. O barman que me atendera anteriormente volta a abrir um sorriso no rosto bonito e eu faço o meu pedido, dando-lhe novamente o cartão de consumo.
- São os dois para ti? - pergunta-me.
Apetece-me responder-lhe com um «achas?» mas decido não fazê-lo. Educadamente, informo-o que uma das bebidas se destina a uma amiga. Ele prolonga o olhar dele mais tempo do que o necessário no meu rosto e marca uma cruz no cartão - Posso saber o teu nome? - pergunta, afoito.
- Mel.
- Nell? - repete ele, mas trocando o «m» pelo «n» e dando uma entoação inglesa ao nome.
- Não. Mel - volto a dizer, habituada já à confusão - Como o das abelhas.
-Ah! Não costumas vir cá, pois não?
- Não, foi uma amiga que me trouxe - digo.
- Fez ela muito bem.
- Talvez- deixo escapar. Pouso os meus olhos nos dele e agarro nas duas bebidas - Obrigada.
- Não desapareças!
Eu rio-me e afasto-me de encontro à Joana. Iniciamos uma conversa sobre empregados de bar atrevidos, até se fazerem ouvir os primeiros acordes de uma guitarra. A primeira música é um cover de James Brown que não me entusiasma por aí além apesar de reconhecer que está bem interpretado. No final ouvem-se alguns aplausos e o vocalista agradece. Seguem-se outras músicas, mais ou menos conhecidas, e enquanto isso eu vou trocando olhares furtivos com o barman. Não que esteja especialmente interessada nele, mas apenas porque isso preenche a minha necessidade de auto-estima. Ouço com agrado a música que começa, um clássico que eu adoro, e no final aplaudo entusiasticamente. Pressinto que talvez tenha exagerado na minha manifestação de satisfação porque noto que o vocalista me fita com uma expressão divertida no rosto."

Capítulo V

" - S'tora, pode chegar aqui?
Volto a cabeça e deparo com um dedo espetado no ar. O seu dono tem um cabelo cheio de caracóis alourados e um ar rebelde estampado no rosto. Aproximo-me da carteira dele, tentando imaginar o que me irá perguntar.
- S'tora, já descobri o seu nome - atira ele com um ar atrevido.
Eu nem quero acreditar que ele me chamou para me dizer aquilo - Como é que te chamas? - inquiro para ganhar tempo.
- Lindorfo, mas todos me chamam Lindo. A s'tora também me vai chamar assim, não vai? - pergunta como se estivesse a lançar um desafio. Soam risos na sala e tento sair airosamente da rasteira que ele me passou - Se já descobriste o meu nome deves ter percebido que ainda assim não é tão mau como o teu - fito-o directamente nos olhos grandes e redondos que juntamente com os caracóis lhe dão um ar de boneco e concluo - Portanto, a ti chamam-te Lindo e a mim Mel, certo? - por momentos, acho que fui rude demais e que ele pode ter ficado ofendido comigo, mas ele abre um sorriso largo no rosto e diz em jeito de resposta - Certo, s'tora. Já agora, que idade é que tem?
Apetece-me perguntar-lhe o que é que ele tem a ver com isso, mas mudo de ideia e respondo suficientemente alto para que todos possam ouvir - A idade suficiente para ser vossa professora e por falar nisso que tal se passassemos às regras de funcionamento da sala de aulas? - coloco o ênfase na palavra «regras» e decido começar com o discurso que preparei na véspera - Em primeiro lugar, gostaria que todos fossem pontuais e que não façam dos atrasos uma constante. Quem se atrasar por sistema terá falta no livro de ponto.
- O que é atrasar-se por sistema? - pergunta um aluno com uma expressão enternecedoramente cómica.
- Como é que te chamas?
- Fernando.
- Fernando, custa-me a crer que um aluno do 11ºano não saiba o que é atrasar-se por sistema.
- S'tora, eu sei o que é atrasar-se sempre, mas não sabia que isso é atrasar-se por sistema.
Voltam a ouvir-se risos e eu resolvo não dar muita importância ao assunto. Assim, digo de uma forma natural - Agora já sabes. Em segundo lugar, gostaria que não mantivessem conversas transversais durante a aula e especialmente quando eu estiver a explicar a matéria.
- S'tora, o que são conversas transversais? - a voz pertence ao mesmo aluno e eu começo a perder a paciência. Percebo que ele está a tentar ser engraçado ou, se calhar, a testar os meus limites - Quando tiveres uma conversa dessas, não te preocupes que eu aviso-te - preparo-me para continuar, mas ele insiste - Ó s'tora, mas eu quero saber agora o que é, que é para não a ter.
Alguns alunos atiram-lhe comentários do tipo «Anjinho!» e eu considero que tenho que ser mais firme e directa - Ok, vamos falar de uma forma que todos entendam: não quero atrasos, não quero que falem uns com os outros durante a aula e escusam de me perguntar se têm de ficar o tempo todo em silêncio porque a resposta é obviamente negativa. Quando eu digo que quero silêncio na sala de aulas estou a referir-me, como é natural, ao facto de terem de estar atentos quando eu estiver a explicar a matéria. Como é lógico, eu não faço intenção de passar uma aula inteira a falar sem parar. Irei tentar diversificar as estratégias ao longo das aulas.
Uma aluna de óculos cor-de-rosa põe um dedo no ar.
- Como te chamas? - pergunto.
- Chamo-me Cátia. S'tora, vamos ver alguns filmes este ano?
- Vamos - respondo eu prontamente e logo a seguir penso que tenho de arranjar urgentemente um filme que esteja relacionado com algum tema da matéria.
- Que fixe! - exclamam meia-dúzia de alunos.
- Continuando com as regras de funcionamento da sala de aulas, quando alguém quiser intervir, primeiro põe o dedo no ar, como fez a Cátia, e espera a sua vez pera falar.
Imediatamente surge um dedo e verifico que pertence ao Lindorfo - S'tora, também vamos ouvir música?
- Quem sabe... respondo eu de uma forma evasiva, não querendo outra vez comprometer-me.
- Ó s'tora... - continua ele.
- Dedo!
- Ah! Desculpe - aponta o dedo para o tecto e prossegue - S'tora, de que tipo de música é que gosta?
Fico calada durante uns breves instantes enquanto lhe lanço um olhar contemplativo e mais uma vez resolvo ser directa - A minha idade e o tipo de música de que eu gosto não te interessam.
- Eh Lindo! - gozam os outros
- Que foi? - pergunta ele encarando os colegas e voltando a olhar para mim continua - Não, sabe o que é s'tora... é que eu nunca tive assim uma s'tora... e, prontos, 'tá a ver?
- Não, não estou a ver - digo friamente - Independentemente da minha idade e dos meus gostos musicais sou a vossa professora e, portanto, espero que as vossas perguntas estejam directamente relacionadas com a disciplina.
- Desculpe, s'tora.
- Vamos então continuar e sem interrupções desnecessárias - apresento mais algumas regras e passo sem delongas para os objectivos e conteúdos do programa. Subitamente sou sobressaltada pelo toque da campainha e, espantada, percebo que a aula chegou ao fim. Recolho rapidamente as fichas preenchidas e os alunos começam imediatamente a atirar os cadernos para dentro das mochilas e eu reúno igualmente os meus livros e coloco-os debaixo do braço. Alguns lançam-me um «Até amanhã, s'tora». Suspiro de alívio e consciencializo que sobrevivi ao meu primeiro teste. Enquanto fecho a porta da sala pondero se lidei bem com todas as situações que me surgiram e imediatamente se levantam algumas dúvidas: será que fui antipática demais ou, pelo contrário, terei dado muita confiança? O que é que eles terão achado de mim? Continuo absorta nos meus pensamentos e só volto à realidade quando ouço uma voz que me pergunta - Então, que tal correu?
Olho para o lado e deparo com a Maria João, minha colega de estágio - Olá! Vinha mesmo a pensar nisso. Acho que correu bem.
- Óptimo. A minha também correu bem.
Caminhamos par a par, trocando impressões sobre as respectivas turmas e enquanto isso eu vou olhando de relance para a maneira como ela traja: um tailleur que faria as delícias da minha mãe e a indispensável pasta. Imediatamente estabeleço uma comparação com a minha própria indumentária. Começo a perceber o que é que o Lindorfo queria dizer e dá-me uma vontade incontrolável de rir - Desculpa - digo após soltar uma gargalhada - Acho que estou a libertar toda a adrenalina acumulada durante a aula - Dou mais uma risada enquanto a Maria João me lança um olhar complacente e interiormente penso que me apetece sair dali o mais rápido possível e voltar ao meu mundo."

Capítulo IV

"A campainha retine e eu, qual cãozinho de Pavlov, levanto-me automaticamente e com um ardor crescente no estômago, pego no livro do ponto e encaminho-me em passo apressado para a sala de aulas. Apesar de estar morta de medo, prefiro mil vezes encarar logo o que me espera do que estar a protelar. Desço as escadas quase a correr e saio em direcção ao bloco D, que é o sítio onde vou ter a minha primeira aula. As zonas de circulação estão repletas de alunos e enquanto eu passo pelo meio deles, sinto alguns olhares em cima de mim. À medida que me aproximo do bloco D, percebo que a idade dos alunos que se encontram nas imediações aumenta e com ela, aumentam também os olhares e os comentários à minha passagem. Sinto um nervosismo cada vez maior e só me apetece fugir dali rapidamente. Abro caminho pelo meio de um grupo de alunas esbeltas que tagarelam sem parar e encontro-me diante da porta da sala. Abro-a com a chave que trago firmemente fechada na palma da minha mão e entro. Pouso o livro do ponto, o caderno e o manual sobre a secretária e espero em pé que todos acabem de se sentar. Na verdade, o que eu diviso à minha frente é apenas uma mancha indistinta, cujos contornos flutuam de cima para baixo. Aos poucos e poucos, a ansiedade vai-me abandonando e diferentes rostos começar a apresentar linhas mais definidas. Esboço um sorriso e tento clarear a voz para me apresentar e começar a fazer a chamada. Digo «tento clarear a voz» porque a realidade é que estou rouca, o que não tem nada a ver com o nervosismo, mas sim com uma noitada no dia anterior - Bom dia! - digo para começar. Os sussurros abrandam e cerca de trinta pares de olhos fitam-me - Em primeiro lugar, peço desculpa por não conseguir falar mais alto, mas como já devem ter percebido estou rouca - soam alguns risos. Ignoro-os e continuo - Gostaria de começar por me apresentar - faço uma pequena pausa e hesito entre Amélia e Mel, mas é apenas por uma fracção de segundos - Chamo-me Mel e sou a vossa professora de Filosofia. Imediatamente se levanta um burburinho e eu decido passar rapidamente ao assunto seguinte - Vou fazer a chamada para me ir habituando aos vossos nomes.
- S'tora, como é que disse mesmo que se chamava?
Levanto os olhos da lista de fotografias dos alunos e procuro quem fez a pergunta. É um rapaz com um ar perfeitamente normal e não um adolescente de ar ameaçador, como eu temi por momentos. Decido explicar de vez o pormenor do meu nome - Todos me tratam por Mel que é o diminuitivo do meu verdadeiro nome.
- Mas qual é o seu verdadeiro nome, s'tora? - insiste o mesmo aluno.
Resolvo lançar uma cartada - Desafio-te a ti e a todos os outros a adivinhar.
Quase de imediato, começa uma algazarra com vários alunos ao mesmo tempo a arriscar vários nomes, alguns deles completamente a despropósito. Percebo que não foi a melhor táctica e levanto, tanto quanto sou capaz, a voz para me fazer ouvir - Na próxima aula apresentam-me as vossas sugestões, pode ser? Por agora, vou eu passar a conhecer os vossos nomes - começo a fazer a chamada e, pela primeira vez, desde que entrei na sala, os detalhes do rosto de cada um dos alunos surge-me com relativa precisão. Metade são rapazes e a outra metade são, obviamente, raparigas. À medida que vou chamando os nomes, vou verificando a idade de cada um deles e chego à conclusão que três ou quatro não estão assim tão distantes da minha própria idade. Termino a chamada e, finalmente, sento-me para escrever o sumário e marcar as faltas, mas só agora percebo que devia ter assinalado quem está a faltar porque, entretanto, já me esqueci de quem não respondeu à chamada. Resolvo não marcar falta nenhuma e começo sim a escrever o sumário. Reparo que a minha mão treme enquanto desenho as primeiras letras e tento, a todo o custo, disfarçar. As palavras saem-me quase indecifráveis e cheias de feias arestas.
- Qual é o sumário? - pergunta uma voz feminina.
«Que estúpida» penso eu de mim própria; estou a escrever o sumário e esqueci-me de o ditar à turma. Mais um deslize que tento contornar rapidamente - O sumário é «Apresentação e preenchimento das fichas de caderneta. Ponto parágrafo. Regras de funcionamento da aula de Filosofia. Ponto. Objectivos, conteúdos e avaliação na disciplina de Filosofia.Ponto.» - enquanto dito o sumário ouve-se o ruído das folhas e dos cadernos a serem abertos e alguns pedidos de «empresta-me uma caneta».
- Professora, não apanhei a última parte - diz um aluno.
Volto a repetir a parte final do sumário e agarro nas fichas de caderneta para começar a distribuir. Enquanto circulo pelo meio das mesas vou prestando atenção a alguns pormenores: as mochilas atiradas displicentemente para o chão, os cadernos forrados com imagens que vão desde o surf até aos Slipknot, os telemóveis topo de gama pousados em cima das carteiras. Espero que eles terminem de preencher as folhas com os seus dados pessoais e sento-me na beira de uma mesa, numa postura informal. Vejo os olhares surpreendidos de alguns alunos e uma e outra cotovelada dos elementos masculinos da turma e concluo que não foi uma boa ideia. Volto a levantar-me e percorro com o olhar as paredes pintadas de um amarelo doentio e cravejadas de mensagens do tipo «Amo-te Vanessa do 7ºB» ou então outras mais explícitas do género «Comia-te toda...»"

Capítulo III

"Entro a medo e volto a apresentar-me.
- Ah! É a estagiária de Filosofia que faltava! - exclama um indivíduo barbudo e olheirento.
- Devia ter-se apresentado de manhã. Estiveram cá todos os orientadores de estágio para receber os formandos - atira uma mulher, numa voz aflautada, que trabalha afincadamente num computador portátil.
- Peço imensa desculpa, mas só cheguei à pouco - desculpo-me e logo de seguida arrependo-me do meu ar excessivamente subserviente.
- Como é que te chamas? - pergunta-me o indivíduo, ao mesmo tempo que mexe e remexe em pastas e dossiers.
- Mel - sinto os olhares de ambos pousados em mim e emendo desajeitadamente - Quer dizer, o meu nome é Amélia mas todos me chamam Mel.
- Pois aconselho-te a usares o teu nome quando te apresentares aos alunos. Já sabes que os miúdos são terríveis para trocadilhos e coisas do género - aconselha a mulher.
Aceno afirmativamente com a cabeça mas interiormente digo a mim mesma que nem todos os Conselhos Executivos do mundo me obrigarão a dizer aos alunos que me chamo Amélia. Parece que já os estou a ouvir a chamarem-me «professora Amélia».
- Ora bem, aqui tens o teu horário - diz o fulano das barbas, estendendo-me uma folha - Como sabes, as aulas começam daqui a quinze dias mas até lá vão realizar-se algumas reuniões, por isso é melhor estares atenta ao placard que está na sala de professores. É verdade, também te vou dar o número de telefone da Fernanda Gomes para poderes entrar em contacto com ela.
De repente, sinto-me confusa - Desculpe, mas quem é a Fernanda Gomes?
Ele olha para mim surpreendido - A tua orientadora de estágio.
Sinto-me completamente estúpida e coro, o que me deixa ainda mais irritada. Escrevinho nas costas do horário o bendito número de telefone e saio dali o mais rapidamente possível. Já cá fora percebo que nem sequer sei o nome da pessoa que falou comigo e sinto que todas as minhas expectativas foram goradas. Não era esta a recepção que eu esperava. Contava que me acolhessem de braços aberto, que perdessem uma hora comigo a detalharem todas as informações importantes sobre a escola e no final me levassem, em visita guiada, a conhecer as instalações. Uma vez que nada disso aconteceu, dirigo-me novamente à funcionária e pergunto-lhe pela sala de professores. Ela informa-me que fica no primeiro piso e, com surpresa, noto umas escadas nas quais não reparei quando entrei pela primeira vez no átrio. A sala de professores é uma divisão ampla, repleta de armários identificados por códigos, uma zona de estar com alguns sofás e várias mesas de trabalho. Ao fundo, três secretárias alinhadas e encostadas à parede servem de apoio a três computadores e a uma impressora. Sento-me num dos sofás só para sentir como é estar num local que durante toda a minha vida de estudante me esteve vedado. Imagino como será quando houver pessoas a falar todas ao mesmo tempo, pastas, livros e risos, uma vez que de momento a sala está vazia. Lembro-me que ainda não analisei com atenção o horário que me atribuíram e resolvo fazê-lo agora, mas quase desmaio de susto quando verifico que, pelo menos, às terças, quintas e sextas-feiras começo as aulas às oito e meia. Começo logo a imaginar, com pesar, que vou ter de me deitar cedo o que me deixa mortalmente aborrecida já que sou uma noctívaga feroz. Levanto-me do sofá, suspirando, e guardo cuidadosamente a folha do horário na minha mochila. olho mais uma vez em meu redor e decido que por hoje já chega de escola."

Capítulo II

"Encosto-me a um canto do balcão e começo laboriosamente a encher todas as quadrículas de letra de imprensa e números bem desenhados. Passado um bocado, detenho-me. Escalão? Indíce? Fico sem saber se devo ou não chamar a funcionária que, entretanto, iniciou uma conversa com uma das suas colegas acerca de um casaco que comprou por uma «bagatela». Enquanto decido o que fazer, a porta range e eu olho para ver quem entra. É uma mulher nova, alta, de cabelos platinados e com um andar desembaraçado. Nos pulsos tilintam-lhe várias pulseiras de ouro. Encosta-se ao balcão, mesmo ao meu lado, e eu interrogo-me se, subitamente, fiquei invisível.
- Dona Lucinda! - chama ela.
A Dona Lucinda, que parece então ser o nome da senhora que me atende, vira-se com um grande sorriso estampado no rosto - Oh sô tora Margarida! Tenho mesmo aqui a listagem de alunos que me pediu - e prontamente vasculha, na imensidão de papéis que adorna a sua secretária, a tal lista. A sô tora Margarida, minha futura colega, tamborila com os dedos no balcão enquanto aguarda. Eu observo-a, subrepticiamente, e penso que nunca terei aquela figura esbelta, nem aqueles cabelos impecavelmente lisos, nem aquelas unhas bem tratadas. Ao pé dela sinto-me desleixada e desgrenhada. Volto a olhar para as minhas Levis e ponho em dúvida se devo ou não trocar as minhas roupas.
- Aqui está, sô tora! - exclama triunfantemente a Dona Lucinda, agitando um papel - Credo, é tanta papelada que uma pessoa até se perde.
- Muito obrigada - agradece a outra, pegando na listagem. Roda nos seus saltos altos e abre a irritante porta que volta a ranger de uma forma desagradável.
Regresso aos meus próprios papéis e lembro-me que não sei o que é escalão e índice - Por favor - chamo - não sei como preencher esta parte.
A Dona Lucinda abeira-se do vidro e eu aponto-lhe a minha dúvida - Ah! Pode deixar em branco que depois nós preenchemos.
Apetece-me perguntar o que é efectivamente o escalão e o índice mas decido não fazê-lo. Acabo de completar o resto e entrego tudo, empurrando delicadamente os papéis por baixo do vidro. Ouço atentamente mais algumas explicações sobre documentos que preciso de entregar e no final é-me indicado o Conselho Executivo como sendo o meu próximo destino. Estranho a designação "Conselho Executivo" porque, se bem me lembro, no meu tempo, chamava-se Conselho Directivo. Marcho obedientemente rumo à minha nova paragem e encontro mais uma porta resmungona que abre para um átrio quadrado. Num ápice, diviso vários pormenores: ao fundo, uma secretária com uma funcionária; sobre o lado direito, uma porta fechada com a inscrição "Reprografia", seguida de uma outra sem nenhuma placa informativa. Do lado esquerdo, uma porta entreaberta - o Conselho Executivo - e logo de seguida uma "Sala de Reuniões". Espalhados pelo meio do átrio existem vários painéis e encostados às paredes alguns bancos corridos de tabuinhas de madeira. Há algumas vitrinas vestidas de listas que um grupo escasso de alunos (presumo eu) se entretém a observar. Passo sem ser notada e abeiro-me da funcionária começando por dizer quem sou antes que também ela me confunda com uma aluna. Ela diz-me que eu posso entrar e acrescenta que hoje tem sido um corropio com os novos professores a apresentarem-se. Disfarçadamente, olho para um grande relógio que pende de uma das paredes e que marca dezasseis horas e doze minutos e percebo a razão pela qual naquele momento sou a única a apresentar-me; todos os outros devem ter ido logo pela manhãxinha quando eu estava ainda a dormir."

Capítulo I

"Um de Setembro. Entro hesitante, procurando passar despercebida. Olho de fugida para os edifícios que parecem caixotes não só pelo seu formato, mas também pela sua aparência degradada, com a tinta a estalar e rabiscos que tentam desesperadamente parecer-se com grafittis. Tento orientar-me, procurando os serviços administrativos e caminho de uma forma mais resoluta em direcção à seta vermelha com a informação. Abro uma porta pesada que chia ameaçadoramente e acho-me diante de uma espécie de balcão com vários guichets. Ninguém dá ou parece dar pela minha presença e eu fico à espera que alguém se digne a atender-me. Deixo passar os olhos pelos avisos, informações, decretos-lei que povoam as paredes e sinto-me baralhada com uma tão grande desordem visual.
- Tu o que queres, menina?
Assusto-me com a voz que subitamente corta o silêncio e olho à minha volta. Não há ninguém a não ser eu. Deve ser a mim que a voz se dirige. Começo titubeante - Boa tarde! Eu vinha apresentar-me...
A dona da voz, uma senhora bem arranjada, de rosto emoldurado por uma profusão de madeixas acobreadas, fica momentaneamente confusa mas logo assume um tom mais profissional - É professora? Queira desculpar, pensei que fosse uma aluna.
Esboço um sorriso e penso na minha mãe. «Tens que comprar umas roupas adequadas à tua nova situação. Agora és uma professora. Tens que andar chique.» Nem quero imaginar o que considera a minha mãe ser uma pessoa chique. Certamente não será a minha habitual indumentária constituida maioritariamente por calças de ganga. Ela também acha que tenho que comprar uma pasta, daquelas que usam os executivos, ideia à qual eu torço veementemente o nariz. O meu pai coadjuva, acrescentando «e uma gabardina, para os dias de chuva.» Tento explicar, em vão, que vou apenas dar aulas e que hoje em dia já não há essa imagem estereotipada do professor, mas não adianta argumentar com a minha mãe. Quando ela enfia uma ideia na cabeça não há forma de demovê-la. Agora, perante aquela senhora que a minha mãe certamente consideraria «muito chique», equaciono a possibilidade de renovar o meu roupeiro com as tais roupas adequadas à minha nova situação. Olho disfarçadamente para as minhas Levis, desfiadas nos bolsos, parecendo velhas mas que são novas e me custaram alguns euros e penso que prefiro gastar dinheiro a comprar jeans que parecem usados a comprar um fato completo.
- É estagiária, senhora doutora? - na verdade, ela não diz «senhora doutora» mas sim «sô tora» e, de repente, sinto-me importante. É a primeira vez que que alguém me chama assim e imagino logo que daqui para a frente, na mercearia, no cabeleireiro, me vão passar a tratar assim. Respondo-lhe afirmativamente e ela vira as costas e dirige-se a um armário metálico. Vislumbro resmas e resmas de impressos e automaticamente abro a mochila em busca de uma caneta, adivinhando já o que me espera. A senhora volta, carregada de papéis, e fá-los deslizar por baixo do vidro que nos separa - A senhora, por favor, vá preenchendo isto."