sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo VI

"Estou no meu quarto, diante do espelho do armário que me devolve a minha imagem reflectida. Aproximo-me mais e descubro uma inoportuna borbulha no queixo. Uso o lápis corrector e esbato com a ponta dos dedos o excesso de creme. Volto a afastar-me e contemplo-me: o piercing que tenho no umbigo brilha e eu passo levemente a mão por cima dele. O meu piercing tem uma história e foi feito quando eu me apaixonei perdidamente por um rapaz angolano, doce como um dia cálido de Primavera. Acho que estávamos fascinados pelo tom de pele um do outro, pela conjugação do marfim e do ébano e pela sensação que isso provocava em nós. Um dia, decidimos selar o nosso encontro e, em vez de trocarmos alianças, hábito que eu achava detestável, fizemos piercings. Afago-o com carinho enquanto aquelas lembranças me acodem à memória e penso que se não tivéssemos decidido seguir os nossos próprios caminhos, era possível que hoje eu vivesse em Luanda e não na pacífica cidade de Coimbra. No entanto, não foi o medo da violência, da corrupção, da degradação da cidade que me impediram de o acompanhar de regresso à sua terra natal. Foi antes o receio de uma cultura diferente daquela a que eu estava habituada e no seio da qual me tinha tornado gente. Eu que me considerava um baluarte na defesa das minorias, no ataque feroz à xenofobia e ao racismo e na promoção do multiculturalismo, repentinamente ficava apreensiva só com a ideia de viver num país que não fosse aquele onde eu tinha crescido. Não fiquei magoada por ele ter ido sem mim porque compreendi que teambém ele não podia viver para sempre fora da sua terra. Assim, guardei-o na gaveta das recordações reconfortantes e fechei mais um capítulo da minha vida. Isto tinha acontecido há mais de meio ano e desde aí eu não voltara a sair com ninguém. Apetecia-me passar um tempo entregue a mim mesma e ao meu mundo onírico que me alimentava sempre que a tristeza ou a lassidão se apossavam de mim. Os papéis soltos que se acumulavam na minha secretária eram os fiéis depositários desse meu estado de espírito. Hoje, no entanto, acedi aos insistentes apelos da minha amiga Joana e decidi acompanhá-la até a um bar.
Descemos a rua inclinada da minha casa e desembocamos na Praça da República; dali até ao bar são apenas umas centenas de metros o que nos possibilita um agradável passeio a pé para respirar o ar fresco da noite. Apesar de estarmos em Setembro, o tempo continua quente e seco e em Coimbra isso faz-se sentir de uma forma ainda mais intensa e só mesmo a noite acalma a opressiva temperatura. As ruas não apresentam o habitual movimento do tempo de aulas e alguns cafés encontram-se mesmo semi-desertos. É uma cidade pela qual me apaixonei . Gosto das ruas estreitas, talhadas em pedra e ladeadas por fileiras de pequenas casas que se acotovelam. Acho romântico o Jardim da Sereia e o Penedo da Saudade. Adoro o lamento triste das violas que, às vezes, chega até ao meu quarto, levado por uma onda suave de vento. Neste momento, não me imagino a viver em nenhuma outra cidade, ideia que enfurece a minha mãe que considera que eu devo voltar ao sítio onde sempre vivi, assim que termine o estágio. É um problema que eu sei que vou ter de resolver daqui a uns meses.
Chegamos à porta do bar e eu abandono estes pensamentos. Abro caminho, com cuidado, pelo meio de alguns grupos que àquela hora já preenchem o local e dirijo-me ao balcão para pedir uma bebida. Tenho que esperar atrás de uma morena alta e perfumada que haja uma brecha para me poder abeirar, o que acontece daí a uns segundos. Peço um Bacardi, prontamente servido pelo barman, que mo entrega com um sorriso. Estendo-lhe o cartão de consumo que me foi entregue à entrada e ele marca diligentemente uma cruz na respectiva coluna. Devolve-me o cartão e volta a sorrir-me. Eu retribuo e afasto-me, dando lugar a um indivíduo mal encarado. Olho em redor em busca da Joana, mas não a consigo avistar. Terá, certamente, encontrado alguém com quem trocar meia-dúzia de frases, o que não é nada difícil porque ela conhece dezenas de pessoas. Dou um pequeno gole na minha bebida e deixo correr os olhos pelo ambiente. O bar é novo mas não me agrada por aí além, revelando um pretensiosismo barroco com dourados a mais para o meu singelo gosto. Nuns nichos entrecortados na parede repousam alegados deuses do panteão hindu e, num esforço de visão, reconheço Vixnu. A um canto está montado um pequeno palco, que de momento se encontra vazio, apenas com os instrumentos, aguardando pelos seus legítimos donos. Dou mais um gole no meu Bacardi e encolho-me, tentando passar no meio de dois grupos barulhentos. Finalmente, vislumbro a Joana que pelo seu esticar de pescoço também deve andar à minha procura. Aceno-lhe e ela vem ao meu encontro. Aproveito para lhe dizer que o bar não me agrada e que me apetece ir embora. Ela ralha-me e convence-me a ficar, pelo menos, até começar a actuação da banda. Finjo que amuo e termino o Bacardi que aquece no copo. Volto ao balcão e desta vez não tenho que esperar. O barman que me atendera anteriormente volta a abrir um sorriso no rosto bonito e eu faço o meu pedido, dando-lhe novamente o cartão de consumo.
- São os dois para ti? - pergunta-me.
Apetece-me responder-lhe com um «achas?» mas decido não fazê-lo. Educadamente, informo-o que uma das bebidas se destina a uma amiga. Ele prolonga o olhar dele mais tempo do que o necessário no meu rosto e marca uma cruz no cartão - Posso saber o teu nome? - pergunta, afoito.
- Mel.
- Nell? - repete ele, mas trocando o «m» pelo «n» e dando uma entoação inglesa ao nome.
- Não. Mel - volto a dizer, habituada já à confusão - Como o das abelhas.
-Ah! Não costumas vir cá, pois não?
- Não, foi uma amiga que me trouxe - digo.
- Fez ela muito bem.
- Talvez- deixo escapar. Pouso os meus olhos nos dele e agarro nas duas bebidas - Obrigada.
- Não desapareças!
Eu rio-me e afasto-me de encontro à Joana. Iniciamos uma conversa sobre empregados de bar atrevidos, até se fazerem ouvir os primeiros acordes de uma guitarra. A primeira música é um cover de James Brown que não me entusiasma por aí além apesar de reconhecer que está bem interpretado. No final ouvem-se alguns aplausos e o vocalista agradece. Seguem-se outras músicas, mais ou menos conhecidas, e enquanto isso eu vou trocando olhares furtivos com o barman. Não que esteja especialmente interessada nele, mas apenas porque isso preenche a minha necessidade de auto-estima. Ouço com agrado a música que começa, um clássico que eu adoro, e no final aplaudo entusiasticamente. Pressinto que talvez tenha exagerado na minha manifestação de satisfação porque noto que o vocalista me fita com uma expressão divertida no rosto."