sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo XV

"Quando o dia acaba e finalmente chego a casa o meu primeiro pensamento vai para o cd religiosamente guardado na minha sacola. Descalço as botas e massajo suavemente os pés, tentando decidir o que vou fazer em primeiro lugar: comer, arrumar o quarto, planificar aulas, telefonar ao Jorge ou visionar o cd? Opto, mais depressa do que devia, pela última alternativa. Puxo as orelhas da cama para cima, ligo o meu portátil e sento-me recostada contra uma almofada. Insiro com cuidado o cd e fico ansiosamente à espera que algo aconteça. As imagens sucedem-se e assisto ao que parece ser uma prova de surf. Num esforço de visão parece que reconheço o Joka e quase hipnotizada nem dou pelo tempo a passar. Quando o cd chega ao fim, desligo o computador e assalta-me uma melancolia estranha. De repente, é como se toda a minha vida não tivesse sentido e eu não fizesse nada mais do que desfilar perante momentos sucessivos de tempo que se atravessam à minha frente. Penso no curso que escolhi e interrogo-me se a saída profissional que ele me proporcionou é mesmo aquela que eu ambicionava. Concluo, como já conclui outras vezes, que não sei responder a esta questão aparentemente tão simples. Escolhi Filosofia porque gostava de ler e achei piada aos filósofos gregos, mas nunca equacionei a possibilidade de vir a ser professora. Na altura, a única coisa que eu queria era continuar a estudar, independentemente do futuro que esse curso me pudesse proporcionar. Agora que estou perante aquilo que ele me ofereceu, pondero se é mesmo isto que quero fazer durante os próximos anos. Sinto que não tenho nada que me apaixone verdadeiramente, a não ser, a música, a leitura e a escrita (mas mesmo esta é pouco consistente) e que estou confinada ao meu pequeno mundo, convencida que ele é melhor do que o dos outros. A aridez da minha vida resume-se a sair com as minhas amigas e o meu namorado, ir de férias de quando em quando e achar que isso é fantástico. Não tenho nenhum projecto que tome conta de todo o meu ser (como, por exemplo, tem o Joka que é apenas um puto de dezassete anos)do qual não possa prescindir e tenho a sensação que tudo o que vivi até ao momento é fútil e desinteressante. Reflicto no que gostaria de fazer se me dessem a escolher ou se ganhasse o Euromilhões, mas a verdade é que não faço a mais pálida ideia. Certamente se a mesma pergunta fosse feita a outras pessoas, muitas apontariam logo mil e um projectos que gostariam de ver realizados, mas eu, por mais que pense, não consigo encontrar o meu grande sonho. Sinto-me mal, terrivelmente mal e apetece-me amaldiçoar o cd do Joka que despoletou este pequeno drama existencial.(...)Encontro-me sentada à mesa do café, com o Jorge em frente, e continuo dominada por aquela sensação de apatia mortal que me tomou de assalto no dia anterior. Estou em silêncio, sem vontade de falar, e respondo a conta-gotas às perguntas que ele me faz. Insiste para que eu lhe conte o que tenho e resolvo confidenciar-lhe as minhas angústias - Percebes, Jorge, é como se a minha vida não tivesse um propósito. Não há nada em que eu me destaque. Por exemplo, tu tens um dom- a tua voz- e a tua vida tem um sentido. Se não cantares é como se te faltasse o oxigénio para respirar, não é? É como o Joka...Ele interrompe-me - Quem é o Joka?- O Joka é meu aluno e diz que precisa do surf para viver, tal como tu precisas da música e o David Fonseca da escrita.O Jorge esboça uma expressão algo confusa - David Fonseca? O dos Silence Four?- Sim, mas os Silence Four já não existem. Mas isso não interessa. A questão é que também ele tem um objectivo claro na sua vida e ele não escreve porque quer, mas porque precisa.- Mel, apresentaste-me três exemplos no meio de biliões de pessoas que existem e que, se calhar, passam exactamente pelas mesmas dúvidas que tu tens. E já que falaste do meu próprio caso, também te posso dizer que não que não sei se quero fazer da música a minha vida, ou seja, não tenho um projecto definido.- É diferente. Não sabes se queres fazer da música a tua vida mas, no entanto, tens a música. Eu não tenho nada.O Jorge abana a cabeça em claro sinal de discordância - Como não tens nada?- Nada assim que me venha das entranhas, que seja um apelo telúrico ao qual eu não possa fugir - explico - Tudo o que aprecio na vida é sempre no papel de uma simples espectadora. Gosto de música mas não sei compor nem cantar e, portanto, limito-me a ouvi-la. Adoro a escrita mas acho que que a minha não tem qualidade suficiente, por isso limito-me a ler o que outros escrevem. Gosto de teatro mas não sei representar e então asssisto às peças que os outros interpretam.- E as aulas? Não te preenchem? Não és boa naquilo que fazes?Encolho os ombros - As aulas não me preenchem e acho que não sou boa naquilo que faço porque não me esforço e o não me esforçar leva-nos ao início da questão: não me esforço porque as aulas não me preenchem. É um círculo vicioso, percebes? - depois disto fecho-me num silêncio que eu sei que para o Jorge é desagradável mas a realidade é que não me apetece falar mais sobre isto. Pode ser que que mais uma noite de repouso apague em mim este desconforto que me está a dilacerar por dentro."