sexta-feira, 20 de julho de 2007

Capítulo XVI

"Os alunos estão animados com a perspectiva de um dia diferente e ouvem-se grandes gargalhadas no meio de uma algazarra generalizada. Lembro-me que quando andava no secundário também adorava visitas de estudo e, inevitavelmente, eu e as minhas amigas acabava mos sempre por arranjar grandes paixões nessas ocasiões. Depois de circular pelo autocarro fazendo alguns avisos aos alunos do tipo «nada de bebidas» e «não se fuma no autocarro», sento-me junto da Henriqueta e da Luisinha, alunas de Artes da minha orientadora de estágio, e a nós junta-se também o Bruno, o aluno das piscadelas de olhos maliciosas. Falamos de piercings, de tatuagens e de música e num momento de silêncio eu reflicto na razão que me leva a adorar a companhia dos adolescentes em detrimento da companhia dos meus colegas de profissão, mas a resposta para isso já eu sei há algum tempo: interesses comuns. A ideia que eu tenho é que a maior parte dos meus colegas de profissão estão demasiado preocupados em manter uma postura que camufle o seu verdadeiro eu ou então, e essa será a pior alternativa, esqueceram por completo o seu lado mais genuíno e a altura em que também eles eram jovens adolescentes. Mesmo que eu não sentisse uma grande afinidade com os meus alunos, tenho a certeza que, dentro dos possíveis, iria sempre tentar colocar-me no lugar deles e penso que se todos o fizessem, muitas situações desagradáveis e desentendimentos poderiam ser evitados. Por vezes, a falta de aproveitamento dos alunos não está relacionada com as poucas capacidades, mas sim com a desmotivação, interesses paralelos, ambiente familiar degradado ou outro qualquer factor circunstancial e tudo isso tem que ser tido em conta quando se pretende avaliar o perfil de um aluno. No entanto, esta tarefa não é fácil porque com uma média de trinta alunos por turma torna-se muito complicado para o professor fazer um acompanhamento mais individualizado dos alunos. Volto à realidade porque o Bruno, descarado como sempre, me entreabre ligeiramente o casaco de gsnga. Pergunto-lhe logo o que é que ele pensa que está a fazer e ele diz-me para eu «não stressar» porque ele só quer ver a minha sweat-shirt. Continua a falar e diz que não me vai mais chamar «s'tora» porque afinal eu não sou professora dele. Eu fico mais ou menos alarmada e digo-lhe que não é bem assim porque, na verdade, quando há regências eu vou dar aulas à turma deles. Ele deita-me um olhar desdenhoso e atira-me - Pensei que eras diferente! Não me digas que ligas a essa merda de títulos?!A Henriqueta e a Luisinha repreendem-no, quase em uníssono - Oh Bruno, francamente!Eu decido que não vou passar por enjoada - OK, eu não me importo que vocês me tratem por Mel.O Bruno passa a mão pelos seus compridos e encaracolados cabelos negros, como se os estivesse a acariciar, e sinto que o olhar dele me percorre todo o corpo. Acabamos por cruzar os olhares e há algo no seu rosto que eu não consigo muito bem definir: desafio, talvez? Ao fim de uns breves segundos a sua expressão altera-se e lança-me um sorriso que deixa a descoberto uma fileira de alvos dentes.O resto da viagem decorre sem incidentes e chegados a Lisboa visitamos o que estava programado e ao final do dia, antes de partirmos de regresso a Coimbra, instalamo-nos numa esplanada. A maior parte dos alunos está por ali e a Henriqueta lança um olhar de desprezo ao grupo do Joka, que está acompanhado pela namorada, e comenta com a Luisinha que os «betinhos» chegaram. Eu pergunto-lhe o porquê daquela implicância.- Mel, já viste aquilo? Nitidamente, filhinhos do papá.Aquilo soa-me um bocado a dor de cotovelo e resolvo aprofundar a questão para tentar desfazer aquela impressão - Ah, e vocês também não são filhinhos do papá?- Eles pertencem a outra tribo - observa a Luisinha.- Que tribo? À grande tribo humana, queres tu dizer - contraponho eu - Já falaste com algum deles?Ela abana a cabeça e eu continuo - Estás a ver? Olha, o Joka é muito fixe!- Quem? O Joka, Joka? - pergunta a Henriqueta.Dá-me vontade de rir porque em dois dias é a segunda vez que alguém se refere a ele assim - Sim. Eu acho-o muito simpático.Elas olham as duas em direcção ao sítio onde ele está sentado e riem-se - Nós também o achamos muito simpático, Mel - acrescenta a Luisinha.- Vocês são terríveis!- Dizem que o Joka é fixe, mas aquela namorada dele deve ser uma frívola - diz a Henriqueta.Eu não acredito que ele possa namorar com alguém assim e penso que é a sina das mulheres bonitas serem apelidadas de burras ou supérflua. Elas continuam a trocar impressões entre si sobre o grupo dos «betinhos» até que a Luisinha me pergunta - Se tivesses que escolher, qual preferias? O Bruno ou o Joka?Quase que me engasgo com um gole de Coca Cola que tinha acabado de beber. Tusso e finalmente pergunto - Escolher como?- Assim, a nível físico.Calo-me sem saber o que responder e se devo responder. A imagem do Bruno surge-me imediatamente, como por magia, e eu penso que gosto bastante do aspecto irreverente dele. olho para o Joka que se encontra quase de frente para mim e registo na retina os seus gestos: a forma como ele pega na garrafa de água e a leva aos lábios, a maneira como se recosta na cadeira, ouvindo atentamente a conversa, e o jeito aparentemente descuidado com que as madeixas louríssimas do seu cabelo lhe caem sobre os olhos. Não me apetece desviar o olhar dele e imagino que se pudesse, ficava a tarde toda sentada naquela esplanada a contemplá-lo. - Então Mel? Quem escolhias? - volta a perguntar a Luisinha.Mil pensamentos atravessam-me o espírito e eu penso que devo estar completamente maluca, mas sem hesitar respondo - O Joka, sem sombra de dúvida."

Capítulo XV

"Quando o dia acaba e finalmente chego a casa o meu primeiro pensamento vai para o cd religiosamente guardado na minha sacola. Descalço as botas e massajo suavemente os pés, tentando decidir o que vou fazer em primeiro lugar: comer, arrumar o quarto, planificar aulas, telefonar ao Jorge ou visionar o cd? Opto, mais depressa do que devia, pela última alternativa. Puxo as orelhas da cama para cima, ligo o meu portátil e sento-me recostada contra uma almofada. Insiro com cuidado o cd e fico ansiosamente à espera que algo aconteça. As imagens sucedem-se e assisto ao que parece ser uma prova de surf. Num esforço de visão parece que reconheço o Joka e quase hipnotizada nem dou pelo tempo a passar. Quando o cd chega ao fim, desligo o computador e assalta-me uma melancolia estranha. De repente, é como se toda a minha vida não tivesse sentido e eu não fizesse nada mais do que desfilar perante momentos sucessivos de tempo que se atravessam à minha frente. Penso no curso que escolhi e interrogo-me se a saída profissional que ele me proporcionou é mesmo aquela que eu ambicionava. Concluo, como já conclui outras vezes, que não sei responder a esta questão aparentemente tão simples. Escolhi Filosofia porque gostava de ler e achei piada aos filósofos gregos, mas nunca equacionei a possibilidade de vir a ser professora. Na altura, a única coisa que eu queria era continuar a estudar, independentemente do futuro que esse curso me pudesse proporcionar. Agora que estou perante aquilo que ele me ofereceu, pondero se é mesmo isto que quero fazer durante os próximos anos. Sinto que não tenho nada que me apaixone verdadeiramente, a não ser, a música, a leitura e a escrita (mas mesmo esta é pouco consistente) e que estou confinada ao meu pequeno mundo, convencida que ele é melhor do que o dos outros. A aridez da minha vida resume-se a sair com as minhas amigas e o meu namorado, ir de férias de quando em quando e achar que isso é fantástico. Não tenho nenhum projecto que tome conta de todo o meu ser (como, por exemplo, tem o Joka que é apenas um puto de dezassete anos)do qual não possa prescindir e tenho a sensação que tudo o que vivi até ao momento é fútil e desinteressante. Reflicto no que gostaria de fazer se me dessem a escolher ou se ganhasse o Euromilhões, mas a verdade é que não faço a mais pálida ideia. Certamente se a mesma pergunta fosse feita a outras pessoas, muitas apontariam logo mil e um projectos que gostariam de ver realizados, mas eu, por mais que pense, não consigo encontrar o meu grande sonho. Sinto-me mal, terrivelmente mal e apetece-me amaldiçoar o cd do Joka que despoletou este pequeno drama existencial.(...)Encontro-me sentada à mesa do café, com o Jorge em frente, e continuo dominada por aquela sensação de apatia mortal que me tomou de assalto no dia anterior. Estou em silêncio, sem vontade de falar, e respondo a conta-gotas às perguntas que ele me faz. Insiste para que eu lhe conte o que tenho e resolvo confidenciar-lhe as minhas angústias - Percebes, Jorge, é como se a minha vida não tivesse um propósito. Não há nada em que eu me destaque. Por exemplo, tu tens um dom- a tua voz- e a tua vida tem um sentido. Se não cantares é como se te faltasse o oxigénio para respirar, não é? É como o Joka...Ele interrompe-me - Quem é o Joka?- O Joka é meu aluno e diz que precisa do surf para viver, tal como tu precisas da música e o David Fonseca da escrita.O Jorge esboça uma expressão algo confusa - David Fonseca? O dos Silence Four?- Sim, mas os Silence Four já não existem. Mas isso não interessa. A questão é que também ele tem um objectivo claro na sua vida e ele não escreve porque quer, mas porque precisa.- Mel, apresentaste-me três exemplos no meio de biliões de pessoas que existem e que, se calhar, passam exactamente pelas mesmas dúvidas que tu tens. E já que falaste do meu próprio caso, também te posso dizer que não que não sei se quero fazer da música a minha vida, ou seja, não tenho um projecto definido.- É diferente. Não sabes se queres fazer da música a tua vida mas, no entanto, tens a música. Eu não tenho nada.O Jorge abana a cabeça em claro sinal de discordância - Como não tens nada?- Nada assim que me venha das entranhas, que seja um apelo telúrico ao qual eu não possa fugir - explico - Tudo o que aprecio na vida é sempre no papel de uma simples espectadora. Gosto de música mas não sei compor nem cantar e, portanto, limito-me a ouvi-la. Adoro a escrita mas acho que que a minha não tem qualidade suficiente, por isso limito-me a ler o que outros escrevem. Gosto de teatro mas não sei representar e então asssisto às peças que os outros interpretam.- E as aulas? Não te preenchem? Não és boa naquilo que fazes?Encolho os ombros - As aulas não me preenchem e acho que não sou boa naquilo que faço porque não me esforço e o não me esforçar leva-nos ao início da questão: não me esforço porque as aulas não me preenchem. É um círculo vicioso, percebes? - depois disto fecho-me num silêncio que eu sei que para o Jorge é desagradável mas a realidade é que não me apetece falar mais sobre isto. Pode ser que que mais uma noite de repouso apague em mim este desconforto que me está a dilacerar por dentro."

Capítulo XIV

"- Olá Joka! Já não morres hoje, nem casas amanhã!Ele olha para mim confuso e eu resolvo elucidá-lo - Ainda agora estive a falar em ti.Ele esboça um ligeiro sorriso - A sério?- Quer dizer, não fui propriamente eu que falei. Foram duas meninas com os corações despedaçados.
Ele atira um pouco a cabeça para trás e ri-se. Vê-se que tem noção do efeito que provoca nas adolescentes.
- E as tuas férias, foram boas? - pergunto por delicadeza.
- Foram. Deu para ganhar ânimo para mais uma etapa.
Apetece-me perguntar-lhe se é verdade que ele foi surfar para fora mas, ao mesmo tempo, receio que ele me ache uma metediça; no entanto, a minha indecisão fica resolvida quando ele me pergunta - Já foi à Florida, professora?
Dá-me vontade de atirar uma gargalhada bem alto mas contenho-me - Não, nunca fui à Florida.
- Então não vá. Estive lá a semana passada e fiquei desiludido. Valeu a pena só pela sensação de sentir o sal na pele.
Quando ele diz aquilo, sinto uma espécie de arrepio a percorrer-me o corpo e mentalmente interrogo-me de onde é que ele caiu. Fito-o demoradamente sem saber muito bem o que dizer, porém mais uma vez ele decide por mim - A professora desculpe-me. Não queria parecer pedante. Saiu-me naturalmente.
Começo a achar desconcertante a forma como ele consegue "ler" os meus silêncios e por isso digo rapidamente - Não me pareces pedante, mas sim autêntico.
Ele torna a esboçar um leve sorriso - Obrigado, professora. Bem, vou indo...
Num impulso detenho-o - Espera. Que sítio me aconselharias?
- O Maui, sem sombra de dúvidas - os olhos negros dele cintilam quando fala - A professora talvez prefira o Bali.
- Obrigada. Não me vou esquecer das tuas sugestões quando tiver dinheiro suficiente para fazer uma viagem dessas.
Ele ajeita o gorro ao mesmo tempo que me pergunta - A professora sabe o que eu faço, não sabe?
Abro a boca para responder mas ele não me dá tempo - O surf é a minha vida, professora. Preciso dele como do ar para respirar.
Sinto-me estúpida - Claro. Não quis insinuar que viajasses por simples divertimento. Já te disse que te acho autêntico e, em certa medida, invejo essas tua paixão. Gostava de me sentir assim arrebatada por algo - arrenpendo-me de ter falado tanto e decido que está na hora de pôr fim à conversa - Vou indo. Daqui a pouco temos aula, não é?
- Gostava de lhe emprestar uma coisa, professora.
Sou apanhada de surpresa e não consigo imaginar o que é que ele me poderá querer emprestar. Ele abre a sacola que traz a tiracolo e depois de procurar entre os livros estende-me um cd. Eu agarro-o e olho interrogativamente à espera de uma explicação.
- Quando vir essas imagens vai compreender melhor o que eu quero dizer.
Guardo o cd e só agora me lembro de engolir o café que ficou esquecido em cima do balcão e que está completamente frio.
- Até já! - despede-se ele.
-Até já! - retribuo. Saio igualmente do polivalente com vontade que o dia que acabou de começar, acabe depressa! "

Capítulo XIII

" Acordo com os olhos inchados e uma subtil dor de cabeça. Abro a persiana e constato, com decepção, que está um dia cinzento, daqueles com uma chuvinha miudinha e embirrenta. Tomo um duche rápido, enfio umas calças de ganga e uma camisola de gola alta, dou uma escovadela rápida ao meu desgrenhado cabelo e termino calçando umas botas e vestindo um kispo verde. Pego na minha sacola, que tive a inteligência de deixar preparada na noite anterior, e preparo-me para sair. Lembro-me que falta o perfume e volto atrás, atirando pequenos jactos à toa. Sem perfume, sinto-me despida. Volto a abrir a porta da rua mas mais uma vez recuo. Agora esqueci-me da chave do carro. É falta de hábito. Finalmente consigo reunir tudo o que preciso e depois de descer as escadas a correr, instalo-me, o mais confortavelmente possível, ao volante do meu carro a estrear. Conduzo, com um certo receio, por entre o trânsito da cidade, congestionado a esta hora da manhã, e sinto uma sensação de alívio ao chegar incólume à escola. Encontro duas alunas do 10º ano que me perguntam se as férias foram boas e entramos juntas, tagarelando sobre prendas e passagens de ano. Assusto-me quando uma delas solta um gritinho histérico - S'tora, deixe-me assistir à sua aula do 11º ano.
Olho espantada para ela - A que propósito? Não sabia que gostavas assim tanto de Filosofia.
A amiga responde por ela - Não, s'tora. Ela gosta mesmo é do Joka.
A outra volta a soltar uma risadinha - Olhe para ele, s'tora! Ele é tão lindo!
Olho na mesma direcção e realmente vejo o meu aluno Joka a caminhar, no seu jeito algo displicente, com as mãos enfiadas num Kispo volumoso e um gorro enfiado até às orelhas que lhe deixa apenas de fora as pontas louríssimas do seu cabelo. Não lhes digo nada mas interiormente concordo com elas; ele é muito bonito e tem "montes" de estilo. O rosto continua fortemente bronzeado, transmitindo saúde e lembrando o Verão que, penso eu com tristeza, ainda está tão longe.
- Sabe, ´s'tora, ele viaja pelo mundo todo. Ainda agora esteve naquele sítio... Como é que se chama, Andreia?
- Ai, não sei. Já não me lembro do nome.
- É aquele sítio, s'tora... - enruga a testa num esforço de memória - Não interessa. Daqui a pouco já me lembro.
- E como é que vocês sabem isso tudo? - inquiro com curiosidade.
- Ó s'tora, a Andreia tem um primo que é amigo dele e depois o primo conta à Andreia e prontos.
- Ah, já percebi - digo eu, nada admirada com o sistema de informações delas. Na minha altura de estudante funcionava exactamente da mesma maneira - Mas olha lá, Marisa, cuidado que ele tem namorada!
Ela faz um ar de desdém- É uma pindérica!
Dá-me vontade de rir porque o argumento utilizado é invariavelmente o mesmo, mudando apenas o adjectivo - Não é nada pindérica! Até é muito gira!
A Marisa faz um ar amuado mas, ao mesmo tempo, resignado - 'Tá bem, s'tora, é gira. Mas não interessa, é uma betinha!
Eu encolho os ombros - Pindérica ou betinha, é com ela que ele namora.
A Andreia dá um encontrão à amiga - É isso mesmo s'tora! Ouviste, ó estúpida? - acrescenta.
Faço um gesto de despedida com a mão e dirigo-me em passo apressado para o polivalente para ainda tomar um café antes da aula. Há pouca gente em frente ao balcão do bar e sou prontamente atendida. Despejo com cuidado o pacote de açucar na chávena e sou interrompida por um cumprimento - Bom dia, professora! As férias, foram boas?
Nem sequer preciso de olhar para saber quem é. Só há um aluno que me chama assim - o Joka..."

Capítulo XII

"Sinto uma dor e cerro os dentes.
- Ora, cá está! Agora é só... e, pronto! Vá, vê-te lá ao espelho!
Levanto-me da cadeira, sentindo um ligeiro ardor na pele e olho-me ao espelho. O piercing minúsculo brilha no meu nariz e dá-me uma incontornável vontade de rir ao imaginar a reacção do formador da próxima vez que for assistir a uma aula minha. Na verdade, se hoje acabei de fazer mais um piercing, posso dizer que o devo ao referido senhor. Tudo se passou na reunião que aconteceu depois de mais uma ronda de assistências. Quando chegou a minha vez de ser avaliada, ele não foi nada complacente e, pura e simplesmente, arrasou-me. Disse que eu tinha cometido erros científicos, que não tinha evoluído nada desde a última assistência e que me tinha arriscado a ouvir algo menos próprio pela forma como respondi a um aluno. Fiquei um pouco surpreendida com uma crítica tão acutilante porque a percepção com que eu tinha ficado é que a aula não tinha corrido assim tão mau. Ainda assim, não contra-argumentei, decidida a ouvir pacientemente e em silêncio as observações dele. Mas depois ele começou a tecer comentários acerca da forma como eu me arranjava, acrescentando que não era a mais adequada para uma professora. Desancou nos meus jeans e nas minhas All Star e terminou dizendo que eu tinha que perceber que já não estava na faculdade, mas sim num local onde tinha responsabilidades. Comecei a sentir o nervosismo a tomar conta de mim e não me contive, acabando por lhe dizer que a indumentária não estava directamente relacionada com a competência científica de uma pessoa e se, relativamente à avaliação da minha aula, eu não tinha dito nada, no entanto, considerava que a forma como eu me vestia era uma questão pessoal que não era para ali chamada. Ele tirou os óculos e olhou para mim, espantado, e eu fiquei com a sensação que ele não estava habituado a ser afrontado. A Fernanda tentou deitar água na fervura, dizendo que aquilo era apenas um pormenor sem importância, mas eu não desarmei e insisti na minha ideia, reforçando que não ia abdicar da minha autenticidade em favor de convenções sem sentido. O formador voltou a colocar os óculos, a meio do seu nariz bolboso, e no seu tom falsamente paternal aconselhou-me a ouvir com mais atenção o que pessoas com mais experiência do que eu tinham para dizer. A Fernanda voltou a intervir, de uma forma peremptória, pondo fim à discussão e eu não voltei a abrir a boca, decidindo naquele preciso momento que a minha resposta iria ser dada na próxima assistência. Aquele piercing era a minha tomada de posição. Sei que a partir deste momento o meu estágio está perigosamente em risco, mas a verdade é que eu não posso permitir que um catedrático antiquado me discrimine, só pelo facto de eu não usar uma saia que suba o suficiente para que ele possa deitar olhadelas lúbricas às minhas pernas como faz com as minhas colegas.
- Obrigada Fred! Ficou óptimo!
Ele faz-me uma espécie de vénia e devolve o agradecimento - Obrigado eu. Ficaste linda. E a tatto, é para quando?
Eu rio-me antes de lhe responder - Para isso, ainda preciso de arranjar coragem.
Pago os serviços do Fred e saio, sentindo-me o máximo com o meu novo piercing. A única coisa que me preocupa vai ser a reacção da minha mãe. Para lhe dizer que tinha um piercing no umbigo deixei passar um ano inteiro e aproveitei a noite de Natal, quando a família estava toda reunida, para lhe dar conhecimento. Assim, ela não teve grandes hipóteses de ter um ataque. Agora este, não vai dar mesmo para esconder."

Capítulo XI

"Sempre que penso na relatividade do tempo, acode-me à lembrança "A Persistência da Memória" de Dali. Quando tomo consciência, percebo que estou no final do 1º período, mas se olhar para trás, ainda ontem era o primeiro dia de Setembro. Tive a minha primeira aula assistida pelo formador da Universidade, que não correu bem nem mal; convidei, pela primeira vez, um aluno a sair da sala de aula (o Bruno, um aluno gordinho do 10º ano que gosta de medir forças comigo) e estou, pela primeira vez na minha vida, a decidir uma pequena parte do futuro dos meus alunos, no complicado processo que é atribuir classificações de zero a vinte. É o que eu faço neste preciso momento, sentada numa mesa redonda do polivalente, com o dossier do professor aberto à minha frente e um café ao lado. Não é usual um professor sentar-se ali, por isso, os poucos alunos que por ali circulam, olham-me com algum espanto, mas eu prefiro enfrentar os seus olhares de surpresa do que ouvir as intermináveis histórias das minhas colegas ou, então, ser pela vigésima vez, convidada a contribuir para mais uma campanha "não sei das quantas", por uma implicativa colega de Educação Física que acha que as pessoas não têm mais nada para fazer ao dinheiro. Comparo mais uma vez as classificações de dois alunos, acerca dos quais tenho dúvidas, e mantenho uma certa preocupação, temendo não estar a ser completamente justa. Mordisco a ponta do lápis, num claro sinal de indecisão, e espero que desça sobre mim alguma luz que me ilumine, mas o que subitamente sinto é precisamente uma sombra. Ergo os olhos e deparo com o Lindo, parado à minha frente. Instintivamente fecho o dossier e espero que ele se decida a dizer alguma coisa. Noto algum nervosismo estampado no seu rosto e interrogo-me sobre o motivo dele estar ali especado a olhar para mim.
- Posso falar consigo, s'tora? - resolve-se ele finalmente.
Resolvo jogar pelo seguro - Se é por causa da tua nota, é melhor esperares pela aula para conversarmos acerca desse assunto.
- Não é por causa da nota. É uma outra coisa.
Olho surpreendida para ele e penso que outro assunto é que ele pode ter para tratar comigo e que o deixa à beira de um ataque de nervos. Ele puxa uma cadeira e senta-se mesmo à minha frente, apoiando o queixo entre as mãos. De repente, uma terrível suspeita começa a apoderar-se de mim e começo a sentir-me horrivelmente desconfortável.
- O que tenho para lhe dizer é particular.
As minhas suspeitas adensam-se e recosto-me na cadeira numa tentativa de aumentar a distância entre nós.
- Certamente já reparou que eu gosto muito de si...
Resolvo interrompê-lo - Ainda bem. Gosto que os meus alunos gostem de mim.
- S'tora, eu gosto de si de uma outra maneira.
Tremo só de pensar no que se seguirá, mas não me ocorre nada de inteligente para dizer.
- S'tora, estou apaixonado por si.
Levo um susto e apesar de já estar praticamente a adivinhar o que ele ia dizer, espanta-me a audácia dele. Percebo que a bola está agora do meu lado porque depois de fazer aquela revelação, o Lindo fechou-se num silêncio pesado. Decido abordar o asunto diplomaticamente - Lindo, provavelmente estás a fazer uma grande confusão. É natural os alunos sentirem alguma admiração pelos seus professores...
Ele abana energicamente a cabeça - S'tora, isso aplica-se a miúdos do 7º ano. Eu tenho 19 anos e sei muito bem o que é estar apaixonado.
O argumento dele desarma-me mas não me posso dar por vencida - Ainda assim. Eu penso que estás a projectar em mim... - mais uma vez não consigo acabar a minha frase.
- Eu ando sempre à sua procura para ver se a vejo. Aos fins-de-semana sinto a sua falta e não paro de pensar em si, portanto, gostava que me levasse a sério.
Vejo que não tenho escapatória possível e que vou ter de falar a mesma linguagem que ele - Olha Lindo, em primeiro lugar, acho que a escola não é o local mais adequado para ter esta conversa, mas já que tomaste a iniciativa eu vou dizer-te o que penso.
Ele suspira fundo, certamente ansioso por saber o que eu vou dizer a seguir e eu prossigo implacável - Respeito o teu sentimento mas deves saber que ele não é correspondido. Gosto de ti como gosto de todos os meus alunos, mas nada mais do que isso.
Ele morde os lábios e eu sinto uma certa pena dele mas não sei que mais lhe posso dizer. Ele acaba por me poupar esse trabalho - Se eu não fosse seu aluno era possível gostar de mim?
É a minha vez de suspirar - É uma questão que não se pode colocar nesses termos.
Ele esboça um gesto de desalento com a mão - Em conclusão, não sou correspondido.
Admira-me que só agora ele tenha inferido isso, mas ainda assim resolvo reforçar a sua brilhante conclusão - Não, não és correspondido.
Durante um momento ele olha-me com aquela expressão de cachorrinho abandonado e eu volto a sentir uma certa dose de pena. Ele afasta a cadeira da mesa e levanta-se devagar - Desculpe qualquer coisa, s'tora.
Eu acompanho-o com o olhar e vejo o seu ar cabisbaixo ao abandonar o polivalente. Quando finalmente desvio os olhos, deparo com outro aluno que, do extremo do pavilhão, me fita insistentemente. É o Joka, o meu aluno surfista, e a sensação que eu tenho é que fui apanhada em falta. Pego rapidamente nas minhas coisas e saio dali em passo apressado. Não sei muito bem explicar porquê mas, de repente, sinto que o meu dia está irremediavelmente estragado."

Capítulo X

"A minha primeira regência correu relativamente bem e a Fernanda elogiou a minha capacidade comunicativa. No entanto, a aula que a Maria José tinha dado uns dias antes foi muito melhor do que a minha, fundamentalmente, porque a Maria José, à custa de muito esforço e dedicação, consegue imaginar estratégias diversificadas para apresentar a matéria, o que acaba por dinamizar a aula. Eu acho que o único ponto fraco dela é o timbre da sua voz que é fininho e irritante. Colocando de parte esse pormenor, considero que ela vai dar uma excelente professora. A mesma observação não posso fazer relativamente à Teresa, que está claramente em pânico, no meio da sala, incapaz de manter a ordem com as suas admoestações em tom maternal e enrolando-se no seu próprio discurso confuso. Eu, a Luísa e a Maria José trocamos olhares entre nós e observamos a Fernanda que, tal como nós, se encontra sentada no fundo da sala e escreve sem parar no seu caderninho de notas, de capa dura, que nós já conhecemos muito bem. Começo a sentir aquela sensação familiar de embaraço por solidariedade e concluo que não vale a pena apontar nada porque a prestação da Teresa está a ser uma absoluta desgraça. Na carteira ao lado, um aluno tamborila com o lápis na mesa e o ruído começa a irritar-me. Deito-lhe um olhar gelado e, em troca, ele pisca-me o olho. Não sei se devo ficar indignada mas, inevitavelmente, acaba por me assomar um sorriso aos lábios que é prontamente imitado pelo aluno em questão. Volto a olhar para a frente mas passados breves instantes, volto a deitar-lhe uma olhadela dissimulada. Ele tem o cabelo comprido e encaracolado, olhos negros e roupas largas e escuras. A turma é de Artes e eu penso logo que ele tem um verdadeiro estilo de artista. Finalmente o tormento da Teresa chega ao fim e todas nós suspiramos de alívio. O aluno-artista lança-me um sorriso e despede-se com um «tchau, aí!» ao qual eu correspondo, bem-educada, com um «adeus». Acodem-me à lembrança as palavras cautelosas da minha mãe, sempre preocupada com tudo. «Vê lá filha, não dês muita confiança aos alunos; olha que eles têm que te respeitar». Faço uma rápida retrospectiva, tentando avaliar se tenho dado, nas próprias palavras da minha mãe, muita confiança aos alunos. Por vezes, digo coisas das quais depois me arrependo, mas essa forma de agir tem a ver com a minha impulsividade. A ponderação não é uma das minhas virtudes. A Fernanda lembra-nos que temos de reunir para fazer a apreciação da aula da Teresa e juntas dirigimo-nos para a sala que funciona como gabinete do grupo de Filosofia. No seu jeito calmo, a Fernanda começa a tecer algumas considerações acerca da aula e, de um a forma objectiva, aponta-lhe os aspectos onde ela falhou. A Teresa acena afirmativamente com a cabeça, consciente de que as críticas são justas e adianta, como explicação para o que se passou, o nervosismo que a assaltou por saber que estava a ser observada e avaliada. A Fernanda pede a nossa opinião e nós, a contra gosto, porque é sempre complicado falar de alguém que está nas mesmas circunstâncias, acabamos por corroborar as ideias gerais dela. A Teresa está visivelmente cabisbaixa e nós consolamo-la, dizendo que a próxima correrá certamente melhor. A Fernanda termina a reunião, relembrando-nos da importância de termos o nosso dossier de estágio perfeitamente em ordem porque no final do mês teremos a primeira visita do formador da universidade que virá para assistir às nossas aulas. Uma onda de pânico invade-nos e eu sinto aquele típico ardor no estômago. Despedimo-nos umas das outras e eu encaminho-me para a sala de professores para navegar um pouco na net. Resolvo visitar pela quinquagésima vez o site do carro que eu quero, ou melhor, do carro que posso ter, oferta dos meus pais. Os pais são engraçados: dizem-nos que podemos escolher um carro, mas depois impõem uma série de restrições e nós acabamos por escolher não aquilo que queremos, mas aquilo que eles subtilmente sugerem. Penso, com pena, que vou mesmo ter que dizer adeus ao carro dos meus sonhos e ficar com a realidade, bem menos atractiva mas muito mais baratinha."